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Introdução

As Acidémias Metilmalónica (AMM) e Propiónica (AP) são erros inatos do catabolismo do propionato, devidos a defeitos das enzimas metilmalonil-CoA mutase e propionil-CoA carboxilase, respectivamente. Défices de adenosilcobalamina, cofactor da metilmalonil-CoA mutase, causam formas variantes de AMM.

Epidemiologia

A AMM tem uma incidência estimada em 1:50.000 e a AP em 1:100.000-150.000. São doenças de transmissão autossómica recessiva.

Ambas as doenças estão incluídas no Programa Nacional de Rastreio Neonatal.

Etiopatogenia

O propionato tem origem no catabolismo de alguns aminoácidos (valina, isoleucina, treonina e metionina), dos ácidos gordos de cadeia ímpar e da cadeia lateral do colesterol, bem como na actividade bacteriana intestinal. O défice enzimático provoca acumulação de propionato e seus derivados.

História Clínica

A AMM e AP podem apresentar-se clinicamente de três modos: forma neonatal com descompensação metabólica precoce e grave; apresentação tardia, aguda e intermitente, com episódios recorrentes de descompensação metabólica; apresentação crónica, progressiva.

Nas formas clássicas de apresentação neonatal, os sintomas surgem precocemente (primeiros dias de vida) com deterioração clínica aguda, vómitos, desidratação, perda de peso, instabilidade térmica, hiper/hipotonia, irritabilidade, letargia, com progressão para coma, com ou sem convulsões. Laboratorialmente, verifica-se acidose metabólica (grave e persistente) com hiato aniónico aumentado, cetose (cetoacidose) e hiperamoniémia.

As formas de apresentação mais tardia podem surgir em qualquer idade e são caracterizadas por quadros clínicos mais heterogéneos (tabela 1).

Tabela 1: Acidémias Metilmalónica e Propiónica – formas de apresentação aguda/ crónica

Bold: sinais/sintomas típicos; itálico: sinais e sintomas raros

As crises metabólicas são frequentemente desencadeadas por eventos catabólicos, aporte proteico excessivo e alguns fármacos (p.ex. corticóides em dose elevada, quimioterapia). Caracterizam-se por anorexia/recusa alimentar, vómitos, desidratação e perda de peso, irritabilidade, letargia, hipotonia, hiperpneia e hipotermia.

É mandatório fazer uma história clínica completa com pesquisa de: consanguinidade; história familiar de mortes neonatais inexplicadas e de doenças neurológicas; história pessoal de anorexia seletiva para proteínas (bem como dos irmãos); hábitos medicamentosos.

Diagnóstico Diferencial

Nas formas clássicas de apresentação neonatal devem ser considerados outros diagnósticos diferenciais mais comuns, tais como: sépsis, traumatismo do parto, obstrução gastrointestinal, doenças cardíacas ou respiratórias.

Nas situações que cursam com encefalopatia aguda, para além de causas não metabólicas (infecção, intoxicação…) devem ser consideradas outras doenças hereditárias do metabolismo que também se podem manifestar desta forma (por ex doença do ciclo da ureia, leucinose, defeitos da beta-oxidação dos ácidos gordos…). 

Nas crises metabólicas, os sintomas podem mimetizar outras doenças, nomeadamente cetoacidose diabética ou síndrome de Reye.

Na AMM é importante o diagnóstico diferencial entre o défice da enzima metilmalonil-CoA mutase e os defeitos do metabolismo/défice da vitamina B12.

Exames Complementares

O diagnóstico de AMM e AP deve ser considerado em qualquer recém-nascido/criança (gravemente doente ou não) com as seguintes alterações (inexplicadas): acidose metabólica; hiperlactacidémia; hiperamoniémia; leucopenia, trombocitopenia, anemia; cetose.

A investigação laboratorial em crise deve incluir: hemograma, amónia, lactato, gasimetria, hiato aniónico, glicémia, aminotransferases, ureia, creatinina, ionograma, ácido úrico, creatina-quinase, aminoácidos plasmáticos, acilcarnitinas, homocisteína, vitamina B12, análise sumária de urina e ácidos orgânicos urinários.

As alterações consistentes com AMM e AP são: acidose metabólica com hiato aniónico aumentado; hiperamoniémia; hiperlactacidémia; cetose; leucopenia, trombocitopenia e/ou anemia; elevação dos ácidos metilmalónico (na AMM), metilcítrico e propiónico; elevação da propionilcarnitina (C3); hiperglicemia com glutamina normal/baixa.

Na presença de AMM com homocistinúria e anemia megaloblástica, devem ser considerados os diagnósticos de défice de vitamina B12 ou de distúrbios do metabolismo intracelular da cobalamina (envolvendo a adenosil e a metilcobalamina).

A confirmação diagnóstica é habitualmente feita por estudo genético (genes MUT, MMAA, MMAB, MMADHC na AMM; genes PCCA e PCCB na AP).

A pesquisa da mutação no DNA fetal o método de eleição para o diagnóstico pré-natal.

Tratamento

Urgência

Em doentes com suspeita ou com diagnóstico já estabelecido de AMM/AP, o tratamento de uma descompensação aguda deve ser iniciado de imediato. Visa corrigir a desidratação e acidose, reverter o catabolismo/intoxicação endógena e eliminar os tóxicos acumulados.

Deve ser consultada a orientação do Cartão de Pessoa com Doença Rara e contactada a equipa do respectivo Centro de Referência de Doenças Hereditárias do Metabolismo assim que possível.

A abordagem inicial deve consistir em:

  • Estabilizar o doente (atenção à desidratação e estado neurológico)
  • Colher amostras para diagnóstico/controlo da doença
  • Reverter catabolismo/ promover o anabolismo:
  • Suspender proteínas por período máximo de 24-48h; reintroduzir (via entérica ou parentérica) quando amónia
  • Iniciar perfusão de glicose a 10% (dose de acordo com a idade) em associação com cloreto de sódio e potássio. Se hiperglicemia, iniciar perfusão de insulina em vez de reduzir aporte de glicose.
  • Iniciar perfusão de lípidos (2g/kg/dia), excepto em doentes sem diagnóstico definido (nesse caso, excluir primeiro defeito da beta oxidação dos ácidos gordos).
  • Retomar precocemente alimentação entérica. Administrar antiemético em SOS.
  • O aporte calórico deve corresponder a cerca de 120% das necessidades energéticas diárias ajustadas à idade.
  • Corrigir acidose se:
  • Acidose grave (pH 15), que persiste após correcção da glicémia e da perfusão de fluidos
  • pH a agravar rapidamente, apesar da terapêutica instituída
  • Nota: corrigir lentamente para metade do défice
  • Tratamento da hiperamoniémia sintomática:
  • Benzoato de sódio: fármaco de eleição em doentes com AMM/AP uma vez que a depuração da amónia ocorre através da conjugação com a glicina. Pode ser administrada por via oral ou endovenosa. Dose: bólus inicial 250mg/kg (90-120 minutos); manutenção 250-500mg/kg/dia (máx 12g/dia).
  • Carbamilglutamato: 100 mg/kg bólus; depois 100-250mg/kg/dia (6/6 h)
  • Técnicas de depuração extra-renal: se amónia  >  250 µmol/L
  • Nota: Doseamento de amónia sérica a cada 3 horas.

Manutenção

O tratamento a longo prazo baseia-se no cumprimento de uma dieta de restrição proteica. Tem como objectivos: crescimento estaturoponderal e desenvolvimento psicomotor adequados; prevenção de episódios de descompensação metabólica; promoção de boa qualidade de vida; evitar efeitos secundários e complicações.

A disponibilização de planos terapêuticos escritos e regimes de urgência personalizados é fundamental.

A dieta, hipoproteica (restrição dos aminoácidos tóxicos: valina, isoleucina, treonina e metionina), deve garantir o crescimento regular. Quando necessário é suplementada com mistura dos outros aminoácidos (não tóxicos) para completar recomendações proteicas (de acordo as normas da FAO/OMS), suplementos de isoleucina/valina (aminoácidos essenciais), carnitina, vitaminas e/ou minerais.

O Metronidazol é habitualmente administrado em ciclos mensais de 1-2 semanas para diminuir a produção de propionato pela flora bacteriana intestinal.

Na AMM respondedora à vitamina B12 está indicado o uso de hidroxicobalamina.

Em casos com hiperamoniémia recorrente/ crónica pode recorrer-se ao benzoato de sódio ou ao carbamilglutamato.

O transplante (renal, hepático ou combinado) deve ser ponderado em doentes não controlados sob tratamento standard e/ou com falência de órgão. A transplantação deve ser considerada apenas como tratamento sintomático e não curativo. A decisão deve ser individualizada e multidisciplinar.

Evolução

Apesar do tratamento, o prognóstico é desfavorável na maioria dos casos, ocorrendo morte precoce ou deficiência neurológica grave em muitos dos sobreviventes.

O atraso de desenvolvimento psicomotor/défice cognitivo tende a ser pior na AP.

As complicações tardias incluem doença renal crónica (quase exclusivamente na AMM) e cardiomiopatia (principalmente na AP), entre outras (ver tabela 1).

A AMM respondedora à vitamina B12 tem melhor prognóstico, se tratada precocemente.

Recomendações

O seguimento destes doentes deve ser feito por equipas multidisciplinares com experiência em Doenças Hereditárias do Metabolismo.

Estes doentes são submetidos a avaliação clínico-laboratorial regular para monitorização do cumprimento terapêutico, estado metabólico e nutricional, bem como deteção precoce/monitorização de eventuais complicações.

Como em qualquer outra doença crónica com importante impacto psicossocial é fundamental o apoio do Serviço Social e de Psicologia.

Deve ser oferecido aconselhamento genético aos pais. 

Bibliografia

  1. Baumgartner et al. Proposed guidelines for the diagnosis and management of methylmalonic and propionic academia. Orphanet Journal of Rare Diseases 2014, 9:130
  2. Manoli I et al. Isolated Methylmalonic Acidemia. GeneReviews 2016
  3. Saudubray J.-M., Baumgartner M. R., Walter J. (2016). Inborn Metabolic Diseases – Diagnosis and Treatment, 6th edition, Springer, pp 276-288.
  4. Acidúria Metilmalónica. In https://metabolicas.sjdhospitalbarcelona.org/ (consultado em 07/2020)
  5. Acidúria Propiónica. In https://metabolicas.sjdhospitalbarcelona.org/ (consultado em 07/2020)

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