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Introdução

Definição

A Diabetes Mellitus (DM) caracteriza-se por hiperglicemia persistente. Na criança e adolescente, mais de 90% dos diagnósticos de DM são do tipo 1 (DM1).1

A DM1 é uma doença crónica caracterizada por défice de insulina secundária à destruição auto-imune das células beta do pâncreas.1

Epidemiologia

Em 2017, a incidência mundial anual estimada de DM1 em crianças e adolescentes (0-19 anos) é de 1564.8/100.000 habitantes e varia entre países, continentes e grupos étnicos.2 Nas últimas décadas houve um aumento da incidência de DM1 a nível mundial, sobretudo em crianças com menos de 5 anos e nos países em vias de desenvolvimento.1

Em Portugal, no ano de 2015 estima-se que surgiram 11.5 novos casos de DM1 por cada 100.000 habitantes dos 0-19 anos e que DM1 atingia 3327 indivíduos nesta faixa etária.

História Clínica

Anamnese

Os principais sintomas de diabetes resultam da hiperglicemia e da incapacidade do organismo obter energia através da glicose: poliúria, polidipsia, polifagia, perda de peso, visão turva e astenia. Outros sintomas possíveis são: enurese nocturna secundária, irritabilidade e diminuição do rendimento escolar. Quando a doença não é detectada precocemente e existe cetose ou cetoacidose, além dos sintomas descritos previamente, associam-se sintomas secundários à presença de corpos cetónicos em circulação: cefaleias, vómitos, dor abdominal e alterações do estado de consciência.  

Exame objectivo

No exame objectivo de uma criança/adolescente com diabetes deve prestar-se especial atenção a: estado de consciência e de hidratação, peso, pressão arterial, frequências cardíaca e respiratória, tipo de respiração, perfusão periférica, hálito e sinais de infecção.

A apresentação clínica na criança/adolescente pode variar desde exame objectivo normal ao coma. A existência de sintomas sugestivos associados a perda ponderal e o hálito cetónico são fortemente a favor do diagnóstico. Quando o quadro clínico evolui podemos encontrar alterações do estado de consciência (secundárias a edema cerebral), desidratação, respiração de Kussmaul (acidose), alterações da frequência cardíaca, da frequência respiratória e da pressão arterial (aumentada no edema cerebral ou diminuída se desidratação grave com choque hipovolémico).

No sexo feminino, pode existir vulvovaginite fúngica.

Pode haver sinais de infecção, nomeadamente febre, caso tenha sido o motivo de descompensação metabólica que levou ao diagnóstico de DM1.

Diagnóstico Diferencial

O diagnóstico diferencial da diabetes faz-se com a hiperglicemia transitória e com outras causas de glicosúria.

A hiperglicemia transitória associa-se geralmente a doença grave e é secundária à resposta fisiológica ao stress. Se não houver contexto de doença, o risco de desenvolvimento de DM1 é maior pelo que se deve pesquisar a existência de auto-anticorpos pancreáticos (anti-ilhéus, anti-insulina, anti-GAD, anti-IA2). Se estes forem positivos existe risco de evolução para diabetes.

Numa criança em que se descobre incidentalmente glicosúria na urina  são necessárias pelo menos 2 determinações de glicemia para excluir/confirmar diagnóstico de diabetes. Outras causas de glicosúria sem hiperglicemia são as disfunções tubulares renais (síndrome de Fanconi-Bickel, síndrome de Fanconi, glicosúria benigna) e podem ser diferenciadas da diabetes efectuando uma PTGO com determinação de glicemia e glicosúria (glicosúria com glicemias normais).

Depois de excluídas outras causas de hiperglicemia e se a pesquisa de anti-corpos for  negativa, é necessário perceber a etiologia para se excluírem outras causas de diabetes; nomeadamente: diabetes tipo 2, secundária a defeitos genéticos da célula β (MODY, diabetes mitocondrial), secundária a defeitos genéticos na acção da insulina, secundária a doenças do pâncreas exócrino (pancreatite, tumor, fibrose quística, hemocromatose), induzida por fármacos/drogas (Glucocorticoides, diazóxido, etc…), causa infecciosa (rubéola, citomegaloviris, enterovirus), associada a patologia endócrina (acromegália, Síndrome de Cushing, glucagonoma, feocromocitoma, hipertiroidismo, somatostatinoma, aldosteronoma), associada a síndromes genéticos (Down, Klinefelter, Turner, Wolfram, Prader-Willi, etc…) ou formas raras de diabetes imunomediada (anticorpos anti-receptor insulina, síndromes poliendrocrnoa auto-imunes I e II, IPEX,etc…).

Exames Complementares

Patologia Clínica

Na suspeita diagnóstica deve efectuar-se determinação da glicemia capilar com a maior brevidade possível. Análises laboratoriais não têm interesse pois atrasam o diagnóstico e aumentam a probabilidade de complicações. Se glicemia capilar ≥ 200mg/dl em qualquer momento ou 126 mg/dl após jejum de 8 horas (critérios de diagnóstico1), deve-se referenciar imediatamente a um serviço de urgência para confirmação diagnóstica e início de terapêutica com insulina.

No serviço de urgência, a avaliação inicial deve incluir glicemia capilar e venosa, cetonemia / cetonúria, gasimetria venosa, lactato, ureia, creatinina, ionograma, cálcio, fósforo e magnésio séricos. A HbA1c e os auto-anticorpos pancreáticos podem ser avaliados posteriormente.

Podemos ter duas apresentações diagnósticas: hiperglicemia (>200mg/dl) e cetonemia positiva (>0.6mmol/L) sem acidose (pH > 7.3) ou cetoacidose diabética. Esta pode ser ligeira (pH

O ionograma é um auxiliar precioso. O sódio permite avaliar a desidratação e o risco de edema cerebral. A pseudohipernatremia é frequente pelo que se deve calcular o sódio corrigido. O potássio deve ser monitorizado porque com o início da terapêutica é co-transportado com a glicose para o interior das células pela acção da insulina, havendo risco de hipocaliémia.

Tratamento

Algoritmo clínico/terapêutico

Na cetoacidose diabética (CAD) é necessária uma atuação rápida e dirigida de modo a diminuir a possibilidade de complicações. Estas crianças devem ser tratadas em centros com experiência e protocolo escrito. Existe um protocolo da Sociedade Portuguesa de Pediatria que pode ser consultado no seu site (www.spp.pt).

O algoritmo de atuação inclui medidas gerais, hidratação e insulinoterapia.

Medidas Gerais
  • Manutenção da permeabilidade das vias aéreas.
  • Administração de O2 se comprometimento circulatório grave/choque
  • Entubação nasogástrica e aspiração se vómitos/alteração do estado de consciência.
  • Cateterização vesical (se desidratação grave/choque para quantificar débito urinário).
  • Colocação de 2 acessos venosos periféricos (1 - terapêutica / 2 - colheitas).
  • Monitorização cardiorrespiratória contínua.
  • Administração de antibióticos se suspeita de infeção subjacente.
  • Transferir para Unidade de Cuidados Intensivos se:  alteração estado consciência (Escala Coma Glasgow), choque, desidratação >10% e risco de edema cerebral  (pH
  • Monitorização:
    • Contínua: Saturação de O2, electrocardiograma
    • A cada hora: parâmetros vitais (TA, FR, FC), exame neurológico (Escala de Coma de Glasgow e sinais/sintomas de edema cerebral), balanço hídrico, insulina administrada e glicémia capilar.
    • A cada 2 horas: gasimetria venosa, glicémia plasmática, cetonémia (até 3 avaliações consecutivas negativas)
    • Ureia, sódio, potássio, cálcio e fósforo nas primeiras 8 horas e posteriormente, podem ser avaliados de 4/4horas.
Hidratação

Pelo risco acrescido de edema cerebral na CAD, quando se inicia hidratação devem considerar-se os seguintes défices de volume: CAD ligeira

Se comprometimento circulatório grave ou choque deve administrar-se bólus NaCl 0.9% 10-20 ml/kg (repetir até correção) e perfusão NaCl 0.9% 10 ml/kg/h até ao fim da 1ª hora (após 1º bólus).Nestes casos, o volume administrado nesta 1ª hora não deve contar para o calculo da desidratação.

Nos restantes casos, iniciar administração de fluidos endovenosos com NaCl 0.9% calculando a correcção da desidratação e as necessidades hídricas diárias (método Holliday-Segar) uniformemente durante 48 horas. Não exceder 1,5-2 x as necessidades diárias de manutenção. Deve-se adicionar um soro com Glucose 5% quando a glicemia plasmática desce para 250-300mg/dl ou para evitar a sua descida rápida (>100mg/dl/hora).

Potássio

A suplementação com K+ endovenoso é sempre necessária, independentemente da sua concentração sérica. A dose é 2-4 mEq/kg/dia (sem exceder 60 mEq/l de soro). O início é dependente da caliémia inicial :   5.5 mEq/L adiar suplementação de potássio. O ritmo de manutenção deve ser adaptado de acordo com ionograma.

Bicarbonato de sódio

Sem benefício clínico, exceto no contexto de reanimação e acidose grave (pH

Insulina

Na cetoacidose diabética é necessária perfusão de insulina endovenosa mas esta só deve ser iniciada 1 hora após o início da hidratação e após correcção de hipocaliémia grave. O objectivo é corrigir a hiperglicémia (descida da glicémia 100 mg/dl/h) e a acidose (subida de pH = 0.03 U/h). A dose de perfusão deve ser 0.1 U/kg/h, excepto se criança 600 mg/dl sem acidose, situação em que se deverá reduzir para metade (0.05 U/Kg/h). Nunca baixar o ritmo de perfusão para menos de 0.05 U/kg/h enquanto persistir acidose; se necessário aumentar o conteúdo de glicose no soro. A perfusão deve ser mantida até resolução da acidose (pH > 7.3 e HCO3- > 15 mmol/l).

Preparação da solução: 50 U insulina rápida (Actrapid®, Humulin R®, Insuman R®) + 50 ml soro fisiológico (1U = 1ml); estável 6h; purgar o sistema com 50 ml da solução.

Via de administração: endovenosa, por via independente ou utilizando um sistema de perfusão em Y.

A administração de um análogo de insulina de acção rápida subcutânea deve ser iniciada como primeira escolha quando não há cetoacidose ou na criança com cetoacidose após melhoria clínica significativa (ausência de acidose e a criança manifestar desejo de comer). A dose diária de insulina (DDI) deve ser de 0.7U/kg/dia (sem CAD e glicemia inicial 600mg/dl). Com base na insulinoterapia funcional, esta dose deve ser repartida entre análogos acção rápida de insulina (Apidra®, Humalog®, Novorapid®) às refeições e análogos lentos de insulina (Lantus®,Levemir®) a cada 24 horas. Os análogos acção rápida devem ser administrados antes das refeições de acordo com glicemia capilar e hidratos de carbono a ingerir. Para o cálculo da dose destes análogos utiliza-se o Fator de Sensibilidade à Insulina (FSI = 1800/DDI = mg/dl de glicemia que 1 unidade reduz) e o Ratio Insulina/Hidratos de Carbono ( Ratio I/HC = 500/DDI = g de HC que 1 unidade de insulina metaboliza). O análogo de acção lenta é habitualmente administrado uma vez ao dia, recomendando-se a sua administração de manhã até pelo menos aos 6 anos e à noite (ao deitar) a partir desta idade.

Evolução

A hiperglicemia crónica associa-se a complicações vasculares e não vasculares.

As complicações vasculares podem ser microvasculares (retinopatia, nefropatia e neuropatia) ou macrovasculares (doença coronária, doença vascular cerebral e vascular periférica). As complicações microvasculares geralmente surgem após a puberdade e 5 ou mais anos após o diagnóstico. As compliações macrovasculares são muito raras em idade pediátrica. O tabagismo, a hipertensão arterial e a dislipidemia aumentam a possibilidade de ocorrência de complicações vasculares. A retinopatia e a nefropatia diabéticas são as principais causas de cegueira adquirida e doença renal terminal, respectivamente. Estas complicações devem ser rastreadas porque é possível parar ou retardar a sua progressão. O rastreio da retinopatia e da microalbuminúria deve ser efectuado anualmente a partir dos 10 anos de idade ou após a puberdade, 2 a 5 anos após diagnóstico através de retinografia e da microalbuminúria. O controlo glicémico intensivo (HbA1c

As complicações não vasculares da diabetes são: doenças do comportamento alimentar e, se houver mau controlo metabólico, atraso do crescimento e pubertário, esteatose hepática, alterações osteoarticulares e neuropatia autonómica.

Recomendações

A DM1 é uma doença cuja etiologia envolve fatores ambientais, genéticos e imunológicos ainda não totalmente conhecidos, pelo que não é possível, até à data preveni-la. É no entanto possível prevenir a CAD através de um diagnóstico correto e uma referenciação atempada.

A terapêutica da DM1 é complexa e exigente. Requer conhecimentos da fisiopatologia da doença, de nutrição (cálculo de hidratos de carbono ingeridos) e de atuação nas complicações agudas (hipoglicemia e cetose). O sucesso da terapêutica é a chave do prognóstico pois evita as complicações tardias da doença. É fundamental uma boa educação e adesão para o sucesso da terapêutica.

A DM1 é uma doença crónica, que requer adaptações constantes de acordo com a  idade e as fases da vida. Devido à necessidade de uma equipa multidisciplinar que inclua diabetologista, enfermeiro, nutricionista e psicólogo é fundamental o seguimento destas crianças e jovens em centros de referência especializados.

Bibliografia

  1. ISPAD Clinical Consensus Guidelines 2014
  2. International Diabetes Federation. IDF Diabetes Atlas 8th edition. http://www.diabetesatlas.org/across-the-globe.html 2017
  3. Diabetes: factos e números 2015 – Relatório anual do observatório nacional da diabetes 12/2016. Sociedade Portuguesa de Diabetologia.

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