Introdução
Definição
As doenças de armazenamento de glicogénio tipo I (GSD I) são um grupo de doenças hereditárias que resultam de um defeito na enzima glucose-6-fosfatase (G6Pase), sendo o subtipo Ia o mais frequente (80%).
Epidemiologia
A incidência anual estimada das GSD I é de 1/100.000 nascimentos, sendo o subtipo Ia particularmente comum nos judeus Ashkenasi.
Etiopatogenia
A G6Pase é uma enzima chave na homeostase da glicémia, constituindo o último passo da glicogenólise e da neoglicogénese. A sua deficiência causa hipoglicémia em jejum, acumulação de glicogénio no fígado e rim, hiperlactacidémia, dislipidémia e a hiperuricemia.
História Clínica
Anamnese
A apresentação clínica mais frequente ocorre em lactentes entre os 3-6 meses de idade com hepatomegalia e/ou sintomas de hipoglicémia (palidez, sudorese, irritabilidade ou prostração, convulsão, coma), geralmente acompanhado de hiperventilação, um sintoma associado à acidose láctica.
A hipoglicemia sintomática pode aparecer logo após o nascimento, no entanto, a maioria dos doentes desenvolve sintomas somente quando o intervalo entre as refeições aumenta ou quando uma doença intercorrente interrompe os padrões normais de alimentação.
O desenvolvimento cognitivo geralmente é normal, com excepção dos doentes com lesões cerebrais provocadas por episódios graves de hipoglicemia.
Mais raramente, os episódios de hipoglicémia podem passar despercebidos e o diagnóstico apenas ser realizado na idade adulta quando são detectados adenomas hepáticos e hiperuricemia.
Outras complicações são anemia, osteopénia, quistos ováricos, atraso pubertário, pancreatite, hipertensão pulmonar, proteinúria, hipertensão, disfunção tubular renal e insuficiência renal.
Exame objectivo
Os achados no exame físico dependem da idade.
Assim, recém-nascidos ou lactentes com idade inferior a 3 meses podem apresentar apenas hepatomegalia moderada sem outros sinais aparentes. As dimensões do fígado aumentam gradualmente, podendo o bordo inferior ultrapassar o nível do umbigo. Apesar disso, pode passar despercebido ao exame físico devido à sua consistência mole. Os adenomas hepatocelulares que ocorrem na idade adulta, raramente são detectados no exame objectivo, excepto quando são superficiais.
Os doentes não tratados geralmente apresentam baixa estatura, face redonda e bochechas cheias (“cara de boneca”), atraso pubertário, abdómen proeminente (hepato e nefromegália), obesidade truncal e atrofia muscular dos membros.
Outros sinais diretamente relacionados com as alterações metabólicas são: xantomas, secundárias à dislipidémia mas que raramente se desenvolvem antes da puberdade; gota associada à hiperuricemia; e equimoses fáceis e epistáxis como resultado da alteração da função plaquetária.
Diagnóstico Diferencial
O diagnóstico dos casos de apresentação clássica da GSD Ia é geralmente simples.
O principal diagnóstico diferencial inclui outras formas de GSD associadas a hepatomegalia e hipoglicemia, especialmente a GSD tipo III e a síndrome de Fanconi-Bickel (um defeito do transportador de glicose 2 classificado como GSD XI, que não está envolvido na via do metabolismo do glicogénio) e menos frequentemente, a GSD VI e IX.
Na GSD III, VI e IX a hipoglicémia é menos grave e a cetonemia mais elevada, Também o lactato e o ácido úrico são frequentemente normais e as transaminases mais elevadas que na GSD Ia. A creatinina quinase pode estar elevada na GSD IIIa devido a comprometimento muscular esquelético e cardíaco. No caso da GSD IV a hipoglicémia é um achado tardio, apenas observado na fase de disfunção hepática evoluindo para cirrose.
A deficiência em frutose-1,6-bisfosfatase apresenta uma tolerância ao jejum maior (8 a 10 horas) do que no GSDIa e a hepatomegália não é tão marcada.
Sinais diferenciadores do sindrome de Fanconi-Bickel são a hiperglicemia pós-prandial, sintomas de malabsorção de hidratos de carbono (diarreia) e baixa estatura mais importante.
Doenças de armazenamento lisossomal, como a doença de Gaucher e a doença de Niemann-Pick tipo B, também apresentam hepatomegalia, distinguindo-se da GSD Ia pela coexistência de esplenomegalia marcada e não apresentarem episódios de hipoglicémia.
Exames Complementares
Patologia Clínica
A GSD Ia apresenta-se frequentemente por episódios de hipoglicémia. As colheitas efectuadas em período crítico são muito importantes para investigação das várias causas endócrinas e metabólicas. Na presença de hepatomegália a investigação em crise deve incluir: glicémia sérica, cetonemia, pH e gases, lactato, ácido úrico, testes de função hepática, creatina-quinase, colesterol e triglicéridos, carnitina total e livre, acilcarnitinas, aminoácidos plasmáticos, análise sumária de urina e ácidos orgânicos urinários.
As alterações consistentes com GSD Ia são: hipoglicemia, acidose láctica, hipercolesterolémia, hipertrigliceridemia e hiperuricémia. Complicações renais podem ser detectadas por análise de microalbuminuria, relação calciúria/creatinuria e função renal.
Alguns doentes, para estudo de outras causas de hipoglicémia realizam prova de estimulação com glucagon. No caso da GSD Ia não só não corrige a hipoglicémia como pode agravar a acidose metabólica, pelo que que não está aconselhada a sua realização para diagnóstico de GSD Ia.
O diagnóstico pode ser confirmado por sequenciação completa do gene G6PC (GSDIa), sem necessidade de realização de biópsia hepática. Ainda assim, quando realizada no estudo diferencial de hepatomegalia, a histologia tipicamente demonstra acumulação de glicogénio e lípidos nas células hepáticas e ausência de fibrose periportal.
Imagiologia
A ecografia hepática pode ser importante para exclusão de outras etiologias de hepatomegalia e para diagnóstico de adenomas hepatocelulares, uma complicação frequente que surge entre a segunda e terceira década de vida. Deve ser realizada com periodicidade anual até aos 10 anos de idade e posteriormente substituída por ressonância magnética nuclear.
Tratamento
O objectivo do tratamento é evitar a hipoglicémia e suas sequelas neurológicas, assim como assegurar o crescimento normal.e manter um bom controlo metabólico de forma a prevenir complicações a longo prazo (hepática, renal, etc.).
Dieta
O tratamento é essencialmente dietético e consiste em refeições frequentes, alimentação nocturna contínua por sonda nasogástrica/gastrostomia, ingestão de hidratos de carbono de absorção lenta (incluindo amido cru) e restrição de sucrose, frutose e galactose (alimentos com açucar, fruta e derivados de leite) que podem agravar a hiperlactacidemia.
O aporte calórico diário deve ser monitorizado: ingestão insuficiente não corrigem as alterações metabólicas (hipoglicemia, hiperlactacidemia e hiperuricemia) e levam a atraso de crescimento; enquanto a ingestão excessiva aumenta a sobrecarga de glicogénio, causando hepatomegalia, dislipidemia e obesidade. A ingestão calórica total deve ser fornecida com 60-65% de hidratos de carbono, 10-15% de proteínas e o restante em lípidos.
Nas crianças recomenda-se evicção do jejum superior a 3 - 4 horas, podendo utilizar-se alimentação nocturna contínua através de sonda nasogástrica ou gastrostomia, com fornecimento de 6-8 mg/kg/minuto de glicose. Nos adolescentes e adultos o jejum não deve ser superior a 5-6 horas.
Não existe consenso sobre a idade de início do amido cru, sendo frequentemente introduzido entre 6 meses e 1 ano de idade. A amilase é necessária para a sua digestão e esta pode não estar totalmente desenvolvida antes dos 2 anos de idade. Começar com uma pequena dose (0,5 g/kg) e aumentar gradualmente pode ajudar a melhorar a tolerância. Os efeitos colaterais podem ser transitórios e incluem diarreia, cólicas e flatulência.
As recomendações gerais sobre a dose do amido cru são: 1,6 g/kg cada 3-4 horas nas crianças pequenas; 1,7-2,5 g/kg cada 4-5 horas nas crianças mais velhas, adolescentes e adultos. Alguns adultos podem necessitar apenas de uma dose ao deitar. O amido deve ser administrado diluído num líquido frio, sem sucrose, frutose ou galactose, fora do intervalo das refeições para não alterar o apetite. A mudança de marca comercial deve ser evitada.
A glicémia deve ser monitorizada antes de cada refeição, com o objectivo de manter acima de 70 mg/dl. Valores inferiores a 60 mg/dl ou sintomáticos devem sem imediatamente corrigidos com glicose oral e posteriormente uma refeição ligeira. Em caso de vómitos ou não tolerância, o doente deve recorrer de imediato a um serviço de urgência para tratamento endovenoso.
A eficácia do tratamento é avaliada por parâmetros clínicos (curva de crescimento, índice de massa corporal, hepatomegalia, pressão arterial) e analíticos (glucose pré-prandial, lactato, pH e gases, perfil lipídico, ácido úrico, e proteinuria).
Adjuvantes
Devido à natureza restritiva da dieta é necessária a suplementação com multivitamínicos, cálcio e vitamina D.
Se ocorrer hiperuricemia poderá restringir-se as purinas na dieta e iniciar terapêutica com alopurinol.
Em caso de microalbuminúria, o tratamento com o inibidor da enzima conversora da angiotensina (IECA) é recomendado com o objetivo de prevenir complicações renais, podendo ser adicionada terapêutica anti-hipertensiva se necessário.
A dislipidemia responde apenas parcialmente ao tratamento dietético. Os fármacos que diminuem o colesterol não são indicados em doentes jovens devido ao baixo risco de aterogenicidade.
O transplante hepático deve ser reservado para doentes com atraso de crescimento e mau controlo metabólico, adenomas recorrentes, com rápido crescimento ou risco de malignização. O transplante renal pode ser realizado em caso de insuficiência renal grave. Os transplantes combinados de fígado e rim foram realizados em alguns casos.
Evolução
O diagnóstico precoce e tratamento dietético eficiente conduziu a uma redução da mortalidade e da morbilidade da doença e a maioria dos doentes consegue ter uma vida relativamente normal. Se a normoglicémia for mantida, as alterações metabólicas e os parâmetros clínicos melhoram na maioria dos doentes, com excepção da dislipidémia que pode persistir.
Com o correcto controlo da doença a incidência de adenomas hepáticos parece ser menor, embora a doença renal não possa ser completamente evitada.
Doentes com mau controle metabólico podem necessitar de transplante hepático ou hepato-renal (com toda a mortalidade e morbilidade associadas a esses procedimentos).
Bibliografia
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