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Introdução

Definição

Cardite Reumática é o nome dado ao envolvimento cardíaco que resulta de sequelas de um ou mais episódios de febre reumática aguda (FRA).

A febre reumática aguda é uma sequela auto-imune tardia que surge duas a quatro semanas após a amigdalite a Streptococcus beta-hemolítico do grupo A (SGA). Manifesta-se com artrite, cardite, coreia, eritema marginatum e nódulos subcutâneos. A FRA leva a uma pancardite que envolve o pericárdio, epicárdio, miocárdio e endocárdio. A válvula mais frequentemente envolvida é a válvula mitral (65-70% dos doentes) seguido pela válvula aórtica, envolvida em 25% dos doentes e a válvula tricúspide em 10%. A válvula pulmonar é raramente afectada. A pericardite, quando presente, é geralmente autolimitada e raramente leva a pericardite restritiva.

Episódios recorrentes de FRA podem levar a uma lesão progressiva das válvulas cardíacas. A fibrose e cicatrização das válvulas cardíacas após o dano inicial leva a que meses a anos após o episódio inicial surjam as manifestações de doença cardíaca reumática crónica. A doença cardíaca reumática crónica surge geralmente 10-20 anos após o episódio inicial de FRA, podendo surgir mais precocemente após episódios graves ou recorrentes. A válvula mitral é afectada em praticamente todos os casos e a válvula aórtica em 20-30% dos casos. A válvula tricúspide está frequentemente envolvida mas o seu envolvimento é geralmente assintomático. Em qualquer uma das válvulas cardíacas afectadas a doença pode evoluir com estenose ou regurgitação.

Os doentes abaixo dos 30 anos apresentam-se geralmente com regurgitação mitral isolada, e após a terceira década de vida desenvolvem doença valvular mista com regurgitação e estenose.

Epidemiologia

A cardite reumática é a forma mais importante de doença cardíaca adquirida em crianças e adultos jovens nos países em desenvolvimento. É responsável por cerca de 15% dos casos de insuficiência cardíaca nos países em que a febre reumática é endémica.  

É uma doença associada à pobreza, sendo endémica em países de África, Ásia, América do Sul e zonas da Austrália. Está praticamente erradicada nos países industrializados desde a segunda metade do século XX, associado a menor virulência dos estreptococos causadores da doença e à da introdução da penicilina.

História Clínica

Anamnese

Febre reumática aguda:

A febre reumática aguda surge com manifestações clínicas variadas duas a quatro semanas após uma amigdalite aguda a estreptococos do grupo A. As manifestações clínicas são usadas como critérios diagnósticos – os critérios de Jones modificados (detalhados abaixo na tabela 1). (1)

As manifestações major de febre reumática aguda são:

  • Cardite e valvulite - em 50-70% dos doentes,
  • Artrite - em 35-66% dos doentes,
  • Envolvimento do sistema nervoso central (ex.: coreia de Sydenhan) – em 10-30% dos doentes,
  • Nódulos subcutâneos – em 0-10% dos doentes,
  • Eritema marginatum – em

As manifestações minor de FRA são as seguintes:

  • Artralgia
  • Febre
  • Elevação de reagentes de fase aguda (velocidade de sedimentação e proteína C reactiva)
  • Intervalo PQ prolongado no electrocardiograma

A FRA tem duas formas de apresentação – uma forma mais frequente (em 70-75% dos doentes) que se apresenta como uma doença febril aguda com manifestações articulares e que geralmente se associa a cardite, e uma forma menos frequente de apresentação caracterizada por um distúrbio neurológico/comportamental associado a coreia de Sydenham e geralmente sem manifestações articulares. Nesta forma de apresentação a cardite, quando presente, é habitualmente subclínica.

Outras manifestações clínicas nos doentes com FRA são dor abdominal, dor precordial, mal estar, epistaxis e taquicardia excessiva para a febre.

Cardite reumática crónica:

Nos doentes com suspeita de doença valvular reumática crónica sequelar é importante procurar um contexto epidemiológico sugestivo (ou seja, ter vivido num país em que a febre reumática é endémica) e história sugestiva de episódios de febre reumática aguda.

Na presença de regurgitação mitral, parte do sangue é ejectado do ventrículo esquerdo para a aurícula esquerda, cavidade cardíaca com baixa pressão. A dilatação da aurícula esquerda que se desenvolve leva a uma diminuição do retorno venoso pulmonar e consequente aumento da pressão venosa pulmonar. Isto pode levar a hipertensão pulmonar e a disfunção ventricular direita. A dilatação do anel mitral que se desenvolve como consequência da dilatação do ventrículo esquerdo e da aurícula esquerda agrava a regurgitação mitral e perpetua a lesão cardíaca. A dilatação da aurícula esquerda aumenta ainda o risco de arritmias auriculares e de compromisso respiratório pela compressão do brônquio principal esquerdo, redução da capacidade pulmonar e edema pulmonar pelo aumento da pressão capilar pulmonar hidrostática. As crianças e adolescentes com regurgitação mitral de grau ligeira a moderada são geralmente assintomáticos, apesar de alguns doentes referirem cansaço com o esforço. À medida que a doença progride há um agravamento sintomático com intolerância ao esforço e sintomas de insuficiência cardíaca.

A estenose mitral na doença reumática dificulta a drenagem da auricula esquerda em diástole, para o ventrículo esquerdo. As consequências hemodinâmicas são semelhantes às da regurgitação mitral, nomeadamente o aumento das dimensões e pressão da aurícula esquerda, hipertensão pulmonar e, na sua forma mais grave, falência ventricular direita. A estenose mitral reumática é a doença valvular adquirida com maior risco de tromboembolismo sistémico, que é ainda mais importante nos doentes com fibrilhação auricular. A estenose e a regurgitação mitral coexistem frequentemente na cardiopatia reumática.  

A regurgitação aórtica crónica é uma condição com sobrecarga de pressão e de volume para o ventrículo esquerdo. Inicialmente há um equilíbrio entre a pós-carga aumentada, a reserva de pré-carga e a hipertrofia ventricular esquerda. Com a progressão da doença desenvolve-se compromisso da função ventricular esquerda com redução da fracção de ejecção. A longo prazo ocorre dilatação do ventrículo esquerdo com agravamento da contractilidade.  A regurgitação aórtica é geralmente bem tolerada pelos doentes que se mantêm assintomáticos mesmo com regurgitação aórtica grave. Com o evoluir da doença e o declínio da função sistólica ou a presença de pressões de enchimento elevadas pode desenvolver-se dispneia, síncope e angina.

Os sinais e sintomas do doente podem ser precipitados por factores agravantes da doença cardíaca reumática, tais como infecções, fibrilhação auricular, gravidez, hipertiroidismo ou tromboembolismo pulmonar. Os doentes com doença valvular reumática têm um risco aumentado de endocardite bacteriana.

Exame objectivo

Febre reumática aguda:

Na suspeita de FRA deve procurar-se evidência da presença das manifestações major e minor acima referidas e abaixo detalhadas na tabela 1.

A artrite é habitualmente a manifestação mais precoce de FRA. É geralmente uma poliartrite migratória que envolve as grandes articulações. As articulações são afectadas de um modo sequencial com cada articulação afectada de um dia a uma semana. A dor articular é geralmente mais importante do que os sinais inflamatórios. A artrite resolve sem tratamento em cerca de 4 semanas sem que haja envolvimento articular crónico.

O envolvimento cardíaco na FRA causa uma pancardite, afectando o pericárdio, o epicárdio e o miocárdio e valvulite, envolvendo na maior parte dos casos a válvula mitral e mais raramente a válvula aórtica. Habitualmente condiciona regurgitação valvular.

A coreia de Sydenham é um distúrbio neurológico caracterizado por movimentos involuntários abruptos não-rítmicos, perda de força muscular e labilidade emocional. A coreia é habitualmente uma manifestação tardia que surge cerca de um a oito meses após a infecção a estreptococos do grupo A.

O eritema marginatum é um eritema não purpúrico que envolve o tronco e os membros sem envolver a face. Surge precocemente na evolução da doença e as lesões estendem-se centrifugamente em forma de anel com um limite exterior bem definido e um limite interno esbatido. As lesões habitualmente tornam-se mais evidentes com água quente.

Os nódulos subcutâneos são lesões firmes, indolores, com diâmetro de poucos milímetros a 2cm que surgem sobre superfícies ósseas. Surgem habitualmente após a primeira semana de doença, geralmente em doentes com cardite grave. Os doentes podem apresentar de um a doze nódulos, sendo o mais habitual a presença de três a quatro nódulos subcutâneos.  

Cardite reumática crónica:

O exame objetivo de um doente com cardiopatia reumática depende da lesão valvular em questão.

A regurgitação mitral tem uma auscultação cardíaca característica, com um sopro característico que é pansistólico, mais audível no ápex e com irradiação à axila. Na presença de doença grave podem também estar presentes um choque de ponta hipercinético e palpável numa localização deslocada para baixo e para a esquerda e um sopro meso-diastólico (por aumento do fluxo através da válvula mitral em diástole). Na doença avançada descompensada há sinais e sintomas de insuficiência cardíaca congestiva e edema pulmonar.

A estenose mitral tem uma auscultação que inclui um aumento da intensidade do primeiro ruído, R1, assim como um sopro telediastólico em crescendo, em todo o precórdio mas mais audível no ápex.

A regurgitação aórtica caracteriza-se por um sopro diastólico agudo, em decrescendo, melhor audível no bordo esternal esquerdo com o tronco do doente inclinado para a frente e em expiração. Os sinais de regurgitação aórtica clinicamente significativa incluem um choque de ponta hipercinético e deslocado para baixo e para a esquerda, uma pressão de pulso ampla com uma pressão arterial sistólica elevada e pressão arterial diastólica baixa e um pulso arterial periférico com uma subida e descida rápidas – pulso em martelo de água ou pulso de Corrigan. Os sinais de doença muito avançada incluem balancear da cabeça síncrono com a frequência cardíaca e pulsatilidade do leito capilar ungueal e da úvula.  

Nas crianças e adolescentes com suspeita de cardite reumática devem ser pesquisados sinais e sintomas de possíveis factores agravantes da doença que tenham precipitado uma descompensação aguda – infecção, fibrilhação auricular, gravidez, hipertiroidismo ou tromboembolismo pulmonar.

Diagnóstico Diferencial

Febre reumática aguda:

O diagnóstico de FRA é feito com base nos critérios de Jones modificados de 2015, ilustrados na tabela 1. Os critérios são diferentes consoante se trate de um local com alta ou baixa prevalência de FRA.

Tabela 1. Critérios para o diagnóstico de FRA em doentes com evidência de infecção prévia a estreptococos do grupo A (que não coreia)

Para o diagnóstico de FRA inicial:

Para o diagnóstico de FRA recorrente:
 

- 2 critérios major ou
- 1 critério major e 2 minor

- 2 critérios major ou
- 1 critério major e 2 minor ou
- 3 critérios minor

Critérios major

População de baixo risco de FRA
- Cardite (clínica e/ou subclínica)
- Artrite (exclusivamente se poliartrite)
- Coreia
- Eritema marginatum
- Nódulos subcutâneos


 

População de risco moderado a alto de FRA
- Cardite (clínica e/ou subclínica)
- Artrite (monoartrite ou poliartrite ou poliartralgia)
- Coreia
- Eritema marginatum
- Nódulos subcutâneos

Critérios minor
 

População de baixo risco de FRA
- Poliartralgia
- Febre (≥ 38,5ºC)
- VS ≥ 60mm/h e/ou PCR ≥ 3mg/dL
- Intervalo PR prolongado para a idade, excepto de a cardite for critério major

População de risco moderado a alto de FRA
- Monoartralgia
- Febre (≥ 38,5ºC)
- VS ≥ 30mm/h e/ou PCR ≥ 3mg/dL
- Intervalo PR prolongado para a idade, excepto de a cardite for critério major

FRA: febre reumática aguda, PCR: proteína C reactiva, VS: velocidade de sedimentação.

Considera-se uma população de baixo risco de FRA a se incidência for ≤ 2/100.000 crianças em idade escolar ou ≤1/100.000 casos por ano de doença cardíaca reumática.

A confirmação de uma infecção prévia a SGA é útil mas não é necessária para que possa ser feito o diagnóstico de FRA. A evidência de infecção prévia pode ser obtida através de uma cultura de exsudado faríngeo positiva, de um teste rápido para o antigénio estreptocócico positivo ou níveis elevados do titulo de anticorpos anti-estreptocócicos – ou anti-estreptolisina O (ASO) ou antideoxiribonuclease B (ADB). Na fase de FRA o teste mais útil é o doseamento de anticorpos uma vez que após a fase de amigdalite aguda a cultura e o teste rápido são habitualmente negativos. A evidência mais sugestiva de infecção é um aumento do título dos anticorpos da fase aguda para a fase de convalescença (com um intervalo de pelo menos duas semanas).  

As várias manifestações de FRA podem ser confundidas com outros diagnósticos. Pode ser difícil a distinção entre os nódulos subcutâneos da FRA e nódulos reumatóides, entre a coreia de Sydenham e outros tipos de coreia ou entre o eritema marginatum e eritema annulare.

Cardite reumática:

O diagnóstico de cardite reumática é feito tendo em conta uma história ou evidência de episódio anteriores de febre reumática aguda e achados clínicos e ecocardiográficos compatíveis com o diagnóstico. A World Heart Federation tem publicados critérios ecocardiográficos para o diagnóstico de cardite reumática em locais com elevada prevalência de febre reumática aguda. (2)

O diagnóstico ecocardiográfico considera-se definitivo em doentes com idade ≤ 20 anos se houver algum dos seguintes critérios:

1. Regurgitação mitral patológica e pelo menos duas características morfológicas de doença reumática da válvula mitral.

As características morfológicas de doença reumática da válvula mitral são:

  • espessamento do folheto anterior da válvula mitral ≥3 mm,
  • espessamento das cordas tendinosas,
  • restrição do movimento dos folhetos da válvula e
  • movimento excessivo da extremidade dos folhetos em sístole. Na presença deste último critério não são necessários mais critérios morfológicos para o diagnóstico

2. Estenose mitral com gradiente médio ≥ 4mmHg (excluindo defeitos congénitos da válvula mitral)

3. Regurgitação aórtica patológica e pelo menos duas características morfológicas de doença reumática da válvula aórtica, excluindo válvula aórtica bicúspide, dilatação da raiz da aorta e hipertensão arterial.

As características morfológicas de doença reumática da válvula aórtica são:

  • espessamento focal ou irregular dos folhetos,
  • defeito da coaptação,
  • restrição do movimento dos folhetos e
  • prolapso dos folhetos

4. Doença borderline da válvula mitral e aórtica (em país com elevada prevalência de doença reumática a presença de regurgitação aórtica e mitral na ausência de cardiopatia congénita deve ser considerado doença reumática)

Na cardite reumática crónica deve ser realizado o diagnóstico diferencial com outras doenças que afectam a válvula mitral e/ou a válvula aórtica,  com regurgitação e/ou estenose valvular. Exemplos de doenças que cursam com regurgitação mitral são a displasia congénita da válvula mitral e a cardiomiopatia dilatada com dilatação do anel mitral e regurgitação mitral.

Exames Complementares

Patologia Clínica

Na FRA a avaliação analítica inicial deve incluir hemograma e o doseamento da proteína C reactiva e da velocidade de sedimentação. Habitualmente os doentes com FRA apresentam leucocitose e anemia ligeira normocitica normocrómica associada a inflamação crónica. A VS é habitualmente ≥60mm/h e a PCR ≥3mg/dL. Para documentação da infecção a SGA deve ser doseado o título de anticorpos anti-estreptocócicos – ou o anticorpo anti-estreptolisina O (ASO) ou o anticorpo anti-deoxiribonuclease B (ADB).

Na cardite reumática a avaliação laboratorial também é útil para avaliar eventuais causas de descompensação da doença reumática, tais como infecção ou hipertiroidismo.  

Imagiologia

  • Radiografia de tórax: a radiografia de tórax em casos de doença valvular moderada/grave pode mostrar cardiomegália, congestão venosa e edema intersticial pulmonar.
  • Ecocardiograma transtorácico: o ecocardiograma permite fazer o diagnóstico de envolvimento valvular, determinar as válvulas cardíacas envolvidas, o tipo de envolvimento (estenose e/ou regurgitação) e a gravidade.

A válvula mais frequentemente envolvida é a válvula mitral e nas crianças a alteração mais habitual é a regurgitação. Na febre reumática aguda a regurgitação mitral é geralmente causada por prolapso do folheto anterior da válvula. O prolapso deve-se a dilatação do anel e alongamento das cordas tendinosas. A estenose mitral e aórtica são pouco frequentes na apresentação inicial. Surgem tardiamente na evolução da doença por fibrose, calcificação e/ou fusão dos elementos constituintes das válvulas e aparelho sub-vavular.  

O ecocardiograma permite também a identificação de derrame pericárdico, dilatação auricular ou ventricular e a avaliação da função cardíaca.

Electrocardiograma

O electrocardiograma pode apresentar sinais de dilatação auricular e/ou ventricular ou de hipertrofia do ventrículo direito secundária a hipertensão pulmonar. Pode também demonstrar bloqueio auriculoventricular de qualquer grau, incluindo a dissociação auriculoventricular (bloqueio auriculo-ventricular de 3º grau), ou a presença de taquidisritmias (geralmente auriculares por dilatação auricular).

O prolongamento do intervalo PQ é um dos critérios minor para o diagnóstico de febre reumática aguda.

Tratamento

O tratamento da FRA consiste em terapêutica anti-inflamatória, antibiótica e terapêutica dirigida à insuficiência cardíaca.(4)

Os principais objectivos do tratamento são:

  • Alívio sintomático das manifestações agudas da doença (ex.: artrite)
  • Erradicação do Streptococcus beta-hemolítico do grupo A
  • Profilaxia secundária para evitar futuras infecções a SGA e evitar a progressão da doença cardíaca
  • Educação do doente e dos seus cuidadores para a doença, reforçando a importância da profilaxia secundária

A terapêutica de primeira linha para a artrite são os anti-inflamatórios não esteróides. O naproxeno é utilizado preferencialmente por ter um melhor perfil de efeitos secundários do que a aspirina. As doses recomendadas são:

  • Naproxeno: 10-20mg/kg/dia de 12/12h até ao máximo de 1000mg/dia em crianças acima dos 2 anos e 250-500mg duas vezes/dia até à dose máxima de 1250mg/dia em adultos.
  • Ácido acetilsalicílico: 80-100mg/kg/dia de 4/4h em crianças e 4-8g/dia em adultos a cada 4 ou 6 horas. Nas crianças recomenda-se iniciar com um dose mais baixa – 50-60mg/kg/dia pelo risco de toxicidade aos salicilatos.

Os doentes com FRA com cardite e insuficiência cardíaca devem receber tratamento dirigido à insuficiência cardíaca. Em casos de insuficiência cardíaca grave pode-se considerar a utilização de glucocorticoides. A cirurgia valvular raramente é necessária na FRA, excepto em doentes com rotura de folhetos valvulares ou de cordas tendinosas, casos em que a cirurgia pode ser urgente. Os resultados cirúrgicos são geralmente mais favoráveis quando a cirurgia é realizada fora do período agudo de FRA.

Não há nenhum tratamento de evite a progressão da lesão valvular na FRA, pelo que a profilaxia de novos episódios de FRA é muito importante. Para a erradicação do SGA os doentes com FRA devem receber um curso de tratamento antibiótico para amigdalite aguda (mesmo que a cultura de exsudado laríngeo seja negativa). Deve ser realizada cultura de exsudado faríngeo aos contactos próximos e devem ser tratados os contactos com cultura positiva, mesmo se assintomáticos.

A profilaxia secundária com penicilina reduz as infecções estreptocócicas, os episódios recorrentes de FRA e a frequência e duração dos internamentos de doentes com FRA e doença cardíaca reumática. As orientações mais recentes da Organização Mundial de Saúde estabelecem que os doentes com cardite reumática ligeira (regurgitação mitral mínima ou cardite resolvida) devem realizar profilaxia secundária durante 10 anos após o ultimo episódio de FRA ou pelo menos até aos 25 anos de idade (o que ocorrer mais tardiamente). Os doentes com lesão valvular mais grave ou que tenham realizado cirurgia valvular devem realizar profilaxia secundária para o resto da vida (ver tabela 3 no separador Prevenção/Recomendações).  

Na doença crónica assintomática não há benefício da terapêutica médica à excepção dos casos de regurgitação aórtica grave assintomática em que a terapêutica com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (iECAs) pode prolongar a fase crónica assintomática. Nos doentes com doença valvular sintomática a terapêutica para a insuficiência cardíaca permite apenas optimizar a hemodinâmica dos doentes até à cirurgia.

Cirurgia

Como há poucos estudos em Pediatria sobre a indicação cirúrgica e o momento mais apropriado para cirurgia, as indicações para cirurgia em crianças são adaptadas das indicações para adultos. Todas as crianças com doença valvular sintomática devem ser referenciados para cirurgia. Nas crianças assintomáticas mas com alteração da função cardíaca, hipertensão pulmonar, fibrilhação auricular ou com dilatação do ventrículo esquerdo o tratamento cirúrgico também deve ser considerado pelo que devem ser encaminhadas para um centro cirúrgico. Na tabela 2 apresentam-se as Indicações para intervenção cirúrgica ou percutânea na doença valvular reumática crónica. (3)

Tabela 2. Indicações para intervenção cirúrgica ou percutânea na doença valvular reumática crónica

Lesão valvular

Indicação para correcção cirúrgica ou intervenção percutânea

Regurgitação mitral grave

Indicação para correcção cirúrgica:
- NYHA classe II-IV
- Dilatação marcada do ventrículo esquerdo: VEDs > 40mm ou z-score > +2
- FE - Pressão sistólica na artéria pulmonar > 50mmHg
- Considerar reparação mais precoce nos doentes com uma anatomia favorável e um elevada probabilidade de reparação com sucesso

Estenose mitral grave

Indicações para correcção cirúrgica:
- NYHA classe II-IV
- Pressão na artéria pulmonar > 50mmHg

Se a anatomia é favorável e a regurgitação é inferior a moderada as indicações para dilatação percutânea com balão são:
- NYHA classe II-IV
- Pressão na artéria pulmonar > 50mmHg
- Área da válvula mitral

Regurgitação aórtica grave

Indicações para correcção cirúrgica:
- NYHA classe II-IV
- Dilatação marcada do ventrículo esquerdo: VEDd > 40mm ou z-score > +2
- FE

Estenose aórtica grave

Indicações para correcção cirúrgica:
- NYHA classe II-IV
- FE

FE: fracção de ejecção do ventrículo esquerdo calculada por modo M, NYHA: classificação da New York Heart Association para a insuficiência cardíaca, VEDd: diâmetro do ventrículo esquerdo em diástole por modo M, VEDs: diâmetro do ventrículo esquerdo em sístole por modo M.

NOTA: a dilatação percutânea com balão da válvula mitral é apenas realizada em alguns centros.

A correcção cirúrgica pode ser realizada por plastia valvular ou substituição da válvula por uma prótese valvular biológica ou mecânica. A prótese valvular mecânica é uma correcção mais duradoura a longo prazo mas tem a desvantagem de requerer anti-coagulação a longo prazo, o que nem sempre é possível nos países em que a FRA é endémica.

Nos casos com regurgitação mitral a primeira opção é a plastia valvular, e se isto não for possível a substituição por uma prótese biológica ou mecânica. Deve evitar-se a implantação de próteses mecânicas em doentes do sexo feminino que queriam engravidar e se houver dúvidas quanto ao cumprimento da anti-coagulação.

A plastia da válvula aórtica apresenta grandes dificuldade técnicas mesmo nos centros com maior experiência pelo que habitualmente se opta pela substituição da válvula aórtica. Em casos seleccionados e em centros com experiência pode também ser realizado o procedimento de Ross – substituição da válvula aórtica por um auto-enxerto pulmonar e substituição da válvula pulmonar com um homoenxerto.  

Evolução

A cardite durante o primeiro episódio de FRA é geralmente ligeira, e a maioria dos doentes com doença ligeira não tem doença detectável 5-10 anos após o episódio se não houver recorrência de episódios de FRA. No entanto, 5-10% das crianças apresentam cardite grave no primeiro episódio de FRA. Nestas crianças o prognóstico é pior com possível necessidade de cirurgia cardíaca e uma maior morbilidade e mortalidade.

Os doentes com valvulite moderada a grave no primeiro episódio de FRA e os que têm episódios recorrentes de FRA frequentemente evoluem para cardite reumática crónica.

O número e a gravidade das recorrências de FRA aumentam a probabilidade de evolução para cardite reumática crónica e a gravidade das lesões crónicas.  

Os seguintes factores associam-se a um maior risco de FRA recorrente:

  • Falta de adesão à profilaxia secundária
  • Maior número de episódios de FRA prévios
  • Intervalo de tempo mais curto desde o último episódio
  • Maior exposição a SGA – crianças, adultos em contacto com crianças, pessoas a viver em espaços com grande número de pessoas
  • Idade mais jovem
  • Presença de envolvimento cardíaco

Nos doentes que desenvolvem cardite reumática com indicação cirúrgica o prognóstico vai depender do acesso a cirurgia cardíaca e dos resultados cirúrgicos do centro em que se realize a cirurgia.

Recomendações

Para que seja possível a prevenção primária do desenvolvimento de FRA é fundamental o diagnóstico e tratamento precoces da amigdalite a SGA.

Os doentes que tenham tido um episódio de FRA têm risco acrescido de desenvolver novo episódio de FRA pelo que devem realizar profilaxia secundária. A duração da profilaxia secundária varia de acordo com a gravidade da doença – tabela 3. (4)

Tabela 3. Indicações para profilaxia secundária após um episódio de FRA

Características do episódio de FRA

Duração da profilaxia a partir do ultimo episódio de FRA

FRA com cardite e lesão cardíaca residual

(evidência clínica ou ecocardiográfica de doença valvular persistente)

10 anos ou até aos 40 anos de idade (dependendo do que ocorrer mais tarde)

Em alguns casos podem haver indicação para profilaxia ao longo de toda a vida – ver indicações na cardite reumática crónica

FRA com cardite mas sem lesões cardíacas residuais

10 anos ou até aos 21 anos de idade (o que ocorrer mais tarde)

FRA sem envolvimento cardíaco

5 anos ou até aos 21 anos de idade (o que ocorrer mais tarde)

Relativamente aos doentes com cardite reumática crónica, os doentes com envolvimento cardíaco ligeiro (ex.: regurgitação mitral ligeira) devem receber profilaxia secundária durante 10 anos após o último episódio de febre reumática, ou pelo menos até aos 25 anos de idade (o que for atingido mais tarde). Doentes com lesão valvular grave ou após cirurgia valvular devem receber profilaxia secundária ao longo de toda a vida.

A profilaxia deve ser realizada com penicilina G benzatínica IM mensal (a cada 18-21 dias). Podem ser utilizadas alternativas orais na indisponibilidade de penicilina e nos doentes com alergia à penicilina. Pode ser ponderada a mudança para profilaxia oral quando os doentes atingem a idade adulta e se se mantiverem sem episódios de FRA. Na tabela 4 apresentam-se os possíveis esquemas terapêuticos.

Tabela 4. Esquemas terapêuticos para profilaxia secundária de FRA

 

Peso ≤ 27kg

Peso > 27kg

Penicilina G benzatinica IM

25.000U/kg a cada 4 semanas 1.2 milhões de unidades a cada 4 semanas

Penicilina V oral

250mg 2x/dia 250mg 2x/dia

Sulfadiazina

500mg 1x/dia oral 1000mg 1x/dia oral
Alergia à penicilina e às sulfonamidas

Azitromicina

5mg/kg oral 1x/dia (até 250mg) 250mg 1x/dia oral

Nos doentes com doença cardíaca reumática é muito importante a vacinação anual com a vacina da gripe e uma boa higiene dentária com avaliações dentárias anuais.

Recomenda-se a profilaxia para a endocardite bacteriana nos doentes com próteses valvulares, com material protésico usado para plastia valvular e nos doentes com história prévia de endocardite bacteriana.

Glossário

Cardite reumática: designação dada ao envolvimento cardíaco que resulta de sequelas de um ou mais episódios de febre reumática aguda.

Febre reumática aguda: sequela auto-imune tardia que surge duas a quatro semanas após a amigdalite a Streptococcus beta-hemolítico do grupo A. Manifesta-se com artrite, cardite, coreia, eritema marginatum e nódulos subcutâneos.

Bibliografia

  1. Gewitz MH, Baltimore RS, Tani LY, Sable CA, Shulman ST, Carapetis J, et al. Revision of the Jones Criteria for the diagnosis of acute rheumatic fever in the era of Doppler echocardiography: a scientific statement from the American Heart Association. Circulation 2015; 131:1806.
  2. Reményi B, Wilson N, Steer A, Ferreira B, Kado J, Kumar K, et al. World Heart Federation criteria for echocardiographic diagnosis of rheumatic heart disease--an evidence-based guideline. Nat Rev Cardiol 2012; 9:297.
  3. RHD Australia (ARF/RHD writing group), National Heart Foundation of Australia and the Cardiac Society of Australia and New Zealand (2012) Australian guideline for prevention, diagnosis and management of acute rheumatic fever and rheumatic heart disease, 2nd edn. Australia.
  4. Mayosi B. Natural history, screening, and management of rheumatic heart disease. Uptodate. Literature review current through: Aug 2017. Last updated: Sep 14, 2015.
  5. Steer A. Acute rheumatic fever: Clinical manifestations and diagnosis. Uptodate. Literature review current through: Aug 2017. Last updated: Jan 06, 2017.

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