Regressão psicomotora no lactente e na criança pré-escolar (excluída patologia neo- ou conatal)
Introdução
Regressão no lactente e na criança em idade pré-escolar (excluídas doenças com expressão neonatal/conatal)
Primeiro é necessário reconhecer que a regressão pode não ter uma causa genética.
Devem ser considerados neste grupo etário:
Epilepsia: A síndrome de West em geral manifesta-se no 1º ano de vida por uma regressão psicomotora global associada a crises de tipo espasmos epilépticos. As etiologias conhecidas são múltiplas contudo num número significativo de casos não é possível determinar qualquer etiologia. A síndrome de Dravet associa crises tónico-clónicas, febris, prolongadas, muitas vezes focais com outros tipos de crises a uma grave estagnação do desenvolvimento psicomotor no 2º ano de vida, sem verdadeira regressão.
Hidrocefalia pode manifestar-se não pelos sinais clássicos de hipertensão intracraniana mas sim por espasticidade lentamente progressiva e disfunção cognitiva.
Infecção HIV é uma etiologia a considerar perante défice cognitivo, espasticidade, hiperreflexia e microcefalia.
Cerca de 10 a 20% das crianças com autismo têm uma regressão com perda de linguagem previamente adquirida e uma grave perturbação de comportamento no final do 2º ano de vida.
No síndroma de Rett ocorre tipicamente uma regressão entre os 6 e os 18 meses. Estas crianças, do sexo feminino, manifestam na fase de regressão uma intensa estereotipia manual (de «lavagem das mãos») associada a uma perda parcial de aptidões motoras (por exemplo perda de capacidade para a marcha) e também uma marcada perturbação de comportamento com insónia e irritabilidade e uma microcefalia adquirida.
Hipotiroidismo será um diagnóstico a considerar seriamente quando não existe um programa de diagnóstico neonatal: história familiar de hipotiroidismo, icterícia neonatal prolongada, macroglossia, edema palpebral, hérnia umbilical, atraso psicomotor global com hipotonia.
Múltiplas doenças metabólicas podem manifestar regressão. Não seria possível uma abordagem exaustiva destas doenças. Salientamos apenas algumas em cada grupo:
Doenças mitocondriais:
A doença de Leigh manifesta-se em geral nos primeiros anos de vida por uma regressão que evolui por surtos com distonia e disfunção do tronco cerebral (oftalmoplegia, disfagia). O envolvimento imagiológico dos gânglios da base e do tronco cerebral pode (ou não) acompanhar-se de acidose láctica. A doença de Alpers é uma doença mitocondrial devida a mutações num gene nuclear (POLG) envolvido na replicação do DNA mitocondrial. Uma epilepsia parcial grave, refractária, hepatopatia com evolução para insuficiência hepática e uma atrofia cerebral progressiva são as suas principais características. O lactato sérico, e mesmo o lactato no LCR, são frequentemente normais.
Defeitos da glicosilação das proteínas: este grupo de doenças tem sido largamente ampliado existindo múltiplos fenótipos. O mais frequente designa-se por CDG tipo 1 A e caracteriza-se por um dismorfismo inespecífico, uma lipodistrofia peculiar, microcefalia, estrabismo, atraso psicomotor global moderado a grave, ataxia e, na RM, uma progressiva e marcada atrofia global do cerebelo. O estudo de focagem isoeléctrica da transferrina permite sustentar este diagnóstico que será depois confirmado pelo estudo genético.
Doenças do metabolismo das purinas: A doença de Lesch-Nyhan manifesta-se (em rapazes) no primeiro ano de vida com uma disfunção motora distónica, progressivamente mais aparente. Automutilação grave é um sintoma típico mais tardio. O ácido úrico sérico ou a relação ácido úrico/creatinina na urina permitem suspeitar desse diagnóstico. O défice de adenilsuccinase é também uma doença do metabolismo das purinas que se manifesta por défice cognitivo, autismo e epilepsia.
Acidúrias orgânicas: na acidúria glutárica de tipo 1 ocorre uma macrocefalia e episódios «encefalopáticos» de hipotonia com distonia. Na RM ou TAC verifica-se além de uma lesão gangliobasal um importante alargamento do espaço extracerebral predominantemente nas regiões perisilvianas. Frequentemente só durante uma crise encefalopática se detecta na urina um pico de excreção do ácido glutárico.
Aminoacidopatias: fenilcetonúria (PKU) deve ser suspeitada (nos países onde não se faz um rastreio neonatal) na presença de microcefalia, grave e progressivo atraso psicomotor e espasmos infantis. O doseamento de fenilalanina sérica na PKU clássica permite suspeitar desse diagnóstico.
Doenças lisossomiais (resultam de défice de hidrolases, de proteínas activadoras ou transportadoras e causam acumulação lisossomial de produtos intermediários do metabolismo).
- Doenças de armazenamento de oligossacáridos e mucopolissacáridos. Neste grupo algumas características clinicas são particularmente importantes: hirsutismo, fácies grosseiro, obstrução nasal crónica, em algumas ocorre opacidade da córnea, baixa estatura, disostose, organomegália, contracturas articulares, défice cognitivo grave na maioria. O fenótipo «hurleriano» (de doença de Hurler- mucopolissacaridose tipo 1) pode ser co-natal mas no início é mais frequentemente subtil, tornando-se progressivamente mais aparente ao longo dos primeiros anos de vida. Também ocorre um fenótipo semelhante nas mucolipidoses e nas doenças de armazenamento de ácido siálico. Salientamos ainda que na Mucopolissacaridose tipo 3- doença de Sanfilippo - o fenótipo físico é bastante menos evidente e predomina inicialmente um défice cognitivo com regressão e um comportamento marcadamente hipercinético e agressivo. O rastreio bioquímico inicial baseia-se no estudo de mucopolissacáridos, oligossacáridos e ácido siálico na urina.
- Doenças de armazenamento de esfingolipidos: na gangliosidose GM2 infantil (doença de Tay-Sachs) há uma regressão durante o primeiro ano de vida, com deterioração visual, hipotonia e «startle» audiogénico. Não ocorre armazenamento visceral (organomegália). Na Doença de Gaucher infantil há uma importante hepato-esplenomegália, hipertonia espástica, estrabismo. A forma infantil de gangliosidose GM1 manifesta-se por uma regressão global com organomegália. Nestas doenças (sobretudo na doença de Tay-Sachs) há uma degenerescência da retina que envolve as células ganglionares da mácula e produz o aspecto denominado «mancha vermelho cereja»)
- Doença de Krabbe e Leucodistrofia Metacromática também são doenças lisossomiais (esfingolipidoses) que contudo incluímos no grupo «leucodistrofias»
Doenças do metabolismo da creatina manifestam défice cognitivo, em geral grave, com traços autisticos, distonia e epilepsia. A RM pode mostrar um hipersinal palidal e especificamente na espectroscopia protónica não se encontra um pico de creatina. O diagnóstico bioquímico baseia-se no doseamento urinário de creatina e ácido guanidinoacético.
Leucodistrofias: as leucodistrofias manifestam-se por uma disfunção motora (atáxica, espástica) em primeiro plano sobre a deterioração cognitiva. Na doença de Alexander a epilepsia pode ser um sintoma precoce e grave o que não é habitual neste grupo. Nalgumas ocorre uma macrocefalia progressiva (doença de Alexander, Leucoencefalopatia megalencefálica com quistos). O padrão de envolvimento na Ressonância Magnética é de grande importância para o diagnóstico diferencial. Na doença de Canavan, uma leucodistrofia do 1º ano de vida, a espectroscopia mostra um marcado aumento do pico de N-acetilaspartato. A doença de Krabbe caracteriza-se por início no 1º ano de vida com regressão motora associada a alguma hipotonia (coexiste neuropatia periférica) e marcada irritabilidade. Em TAC pode observar-se um hiperdensidade talâmica muito sugestiva deste diagnóstico. Na Leucodistrofia Metacromática os sintomas ocorrem em geral no 2º ano de vida com disfunção motora nos membros inferiores, em geral uma paresia com hipotonia e respostas plantares extensoras, seguida de disfunção visual e espasticidade progressiva. A leucodistrofia é predominantemente periventricular por TAC e RM.
Existe uma lista progressivamente maior de Leucodistrofias e a sua descrição está fora do alcance deste texto. A orientação diagnóstica inicial é muito baseada no padrão imagiológico, como referimos anteriormente.
Distrofia Neuroaxonal Infantil pertence ao grupo actualmente descrito como «doenças de armazenamento cerebral de ferro». Tem início no 1º-2º anos de vida. A criança manifesta uma regressão inicialmente motora, atáxica, com sinais progressivamente mais evidentes de uma neuropatia (axonal). Apresenta atrofia óptica e baixa acuidade visual e mais tarde uma tetraplegia de causa central e periférica com arreflexia. A RM mostra uma hipointensidade em T2, palidal e na substância nigra, correspondendo a depósitos de Ferro.
Ceroidolipofuscinoses são um grupo de doenças em que há uma acumulação neuronal e retiniana de um lipopigmento (lipofuscina). A forma infantil tardia de lipofuscinose é uma doença caracterizada por início entre os 2 e os 4 anos de uma epilepsia grave, refractária, ataxia progressiva e demência. Na RM há uma marcada e progressiva atrofia cerebral (e do cerebelo, em alguns casos), moderado hipersinal T2 na substância branca e também, em alguns casos, os tálamos são hipointensos em T2. A biópsia de pele mostra os depósitos de lipofuscina. O défice enzimático de tripeptidil peptidase 1 (o substrato «in vivo» deste enzima não é conhecido) e o estudo do gene CLN2 confirmam o diagnóstico.
Tratamento
Algoritmo clínico/ terapêutico
Completamos esta descrição com imagens de alguns achados típicos de Ressonância Magnética/TAC/EEG em doenças metabólicas/degenerativas e em algumas doenças infeciosas com regressão psicomotora
- Leucodistrofia metacromática
- Adrenoleucodistrofia ligada ao cromossoma X
- Doença de Wilson
- Distrofia neuroaxonal
- Doença de Leigh
- Acidúria glutárica tipo 1
- Mucopolissacaridose tipo III (Sanfilippo)
- Panencefalite esclerosante subaguda EEG
-
Encefalopatia HIV
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