Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono
Introdução
A síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS) é uma perturbação respiratória que cursa com hipoventilação e apneia durante o sono, secundários à obstrução total intermitente ou parcial prolongada da via aérea (VA).
Frequência
Afecta 1-10% das crianças, a maioria em idade pré-escolar.
Fisiopatologia
Ocorre por desregulação da resposta neuromuscular mediada pelos músculos dilatadores da faringe que, por falência dos mecanismos de patência da VA, desencadeia hipercapnia, hipoxemia e aumento do esforço respiratório, com despertar noturno associado. Em idade pediátrica, a maior colapsabilidade e a hipertrofia do tecido linfóide da VA superior facilitam a sua ocorrência.
História Clínica
Anamnese
Devem ser avaliados os fatores de risco que aumentam a probabilidade de doença grave, complicações e resposta parcial e ineficaz ao tratamento cirúrgico, como sendo:
- Idade inferior a 12 meses
- Obesidade (fator de risco independente para SAOS; a resistência da via aérea superior aumenta a probabilidade de síndrome metabólica)
- Malformações craniofaciais (micrognatia, macroglossia e hipoplasia da mandíbula, como nas Síndromes de Down, Apert ou Crouzon)
- Rinite crónica
- Doenças neuromusculares
- Doença pulmonar crónica
- Doença de células falciformes
Sinais e sintomas
A manifestação cardinal da doença é a roncopatia, no entanto, pode estar presente em até 12% das crianças saudáveis em idade pré-escolar e escolar.
Em todas as consultas de Pediatria ou Saúde Infantil deve ser questionada a presença deste sintoma e valorizada quando persistente (> 3 noites por semana) ou associada a outros sinais durante o sono, como sendo:
- Suspeita de apneia ou estridor
- Pausas respiratórias
- Posturas anómalas (hiperextensão do pescoço, cabeça fora da cama, decúbito ventral com os joelhos por baixo do abdómen)
- Hipersudorese noturna
- Respiração oral
- Parassónias (pesadelos, terrores noturnos, sonambulismo)
- Enurese (relacionada com despertar noturno, fragmentação do sono, produção desregulada de péptido natriurético auricular)
Os sintomas diurnos associados à doença são:
- Fadiga
- Cefaleia matinal
- Sonolência diurna – geralmente em adolescentes; ausente nas restantes faixas etárias
- Perturbações do neurodesenvolvimento como hiperatividade e agressividade
- Má progressão ponderal
A utilização do questionário de BEARS pode facilitar a abordagem do sono
2-5 anos | 6-12 anos | 13-18 anos | |
---|---|---|---|
Hora de dormir |
Tem algum problema quando vai dormir? Tem dificuldade em adormecer? |
Tem algum problema quando vai dormir? (P) Tens dificuldade em adormecer? (C) |
Tens dificuldade em adormecer? (C) |
Sonolência |
Parece demasiado cansado ou sonolento durante o dia? Ainda faz sesta? |
Tem dificuldade em acordar de manhã, parece sonolento durante o dia ou dorme a sesta? (P) Sentes-te cansado durante o dia? (C) |
Sentes-te sonolento durante o dia na escola ou durante uma viagem de carro? (C) |
Despertares |
Acorda muitas vezes durante a noite? |
Acorda durante a noite? Tem pesadelos ou sonambulismo? (P) Tens dificuldade em voltar a adormecer? (C) |
Acordas muitas vezes durante a noite? Tens dificuldade em voltar a adormecer? (C) |
Regularidade e duração do sono |
A que horas se deita e levanta? | A que horas se deita e se levanta durante a semana e no fim-de- semana? (P) Achas que dormes o suficiente? (C) |
A que horas te deitas durante a semana? Quantas horas costumas dormir? (C) |
Roncopatia |
Ressona e tem dificuldade em respirar durante a noite? |
Tem respiração ruidosa e ressona ou tem dificuldade respiratória à noite? (P) |
Ressona alto à noite? (P) |
Tabela 1 – Questionário de BEARS
Adaptado de Owens JA, Dalzell V. Use of the 'BEARS' sleep screening tool in a
pediatric residents' continuity clinic: a pilot study. Sleep Med. 2005;6(1):63-9.
Exame objetivo
Pressão arterial: valores de pressão arterial (sistólica ou diastólica) superiores ao percentil 95 para a idade e roncopatia obrigam à exclusão de SAOS
Peso e altura (verificar curvas de crescimento) – Índice de massa corporal
Crânio, face e tórax:
- Malformações craniofaciais e torácicas (micro ou retrognatismo, hipoplasia do andar médio da face, pectus excavatum ou retração das costelas inferiores)
- Estridor
- Sinais de rinite crónica (prega nasal ou prega de Dennie-Morgan)
- Fácies adenoideu
Orofaringe: hipertrofia amigdalina, quando presente, deve ser classificada recorrendo ao score de Brodsky (única escala preditiva de gravidade da SAOS).
Figura 1 – Escala de Brodsky.
Fonte: Brodsky L. Modern assessment of tonsils and adenoids. Pediatr Clin North
Am. 1989;36(6):1551-69.
Auscultação pulmonar: sinais de hipertensão pulmonar[RB1] – 2º som cardíaco (S2) mais audível; desdobramento de S2; sopro sistólico de regurgitação tricúspide; impulso ventricular direito hiperdinâmico.
Diagnóstico Diferencial
A SAOS encontra-se no extremo de maior gravidade das doenças respiratórias do sono. Dentro deste espetro incluem-se, ainda:
- Roncopatia primária – Esforço respiratório e taquipneia, sem despertar noturno, hipoventilação, hipopneia ou apneia.
- Síndrome de resistência das VA superiores (SRVA) – Esforço respiratório com despertar noturno associado (RERA), sem hipoventilação, hipopneia ou apneia.
Esforço |
Clínica | Duração | Redução do fluxo de ar nasal |
Esforço respiratório |
---|---|---|---|---|
RERA |
Roncopatia Respiração ruidosa Aumento do esforço respiratório |
≥ 2 ciclos respiratórios |
> 50% | ↑ |
Tabela 2 – Critérios polissonográficos de SRVA
- Hipoventilação obstrutiva - Esforço respiratório marcado sem despertar noturno, mas com hipoventilação e hipercapnia associada.
Ventilação alveolar | |
---|---|
Hipoventilação | Pressão parcial de CO 2 > 50 mmHg durante > 25% do sono |
Tabela 3 – Critérios polissonográficos de hipoventilação alveolar
- Apneia central – cumpre critérios de apneia (redução do fluxo oronasal > 90%), com duração > 20 segundos ou ≥ 2 ciclos respiratórios, associado a despertar ou dessaturação ≥ 3% ou redução da frequência cardíaca > 60 bpm relativamente ao valor de base.
Exames Complementares
O diagnóstico e gravidade da SAOS são determinados pela polissonografia noturna. Os critérios de diagnóstico não são consensuais. De um modo geral, na presença de sintomas sugestivos, consideram-se patológicos:
- Índice de apneia hipopneia (IAH) ≥ 1/hora
- Índice de apneia obstrutiva (IAO) ≥ 2/hora
Redução fluxo oronasal |
Duração | Esforço respiratório |
↓ SpO 2 |
↓ FC | Despertar | |
---|---|---|---|---|---|---|
Apneia central |
> 90% | ≥ 2 ciclos respiratórios |
0 | ≥ 3% | 60 bpm (15s) |
+ |
> 20 s | (≥ 1 alterado) | |||||
Apneia obstrutiva |
≥ 2 ciclos respiratórios |
++ | ||||
Apneia mista | 0 → ++ | |||||
Hipopneia | ≥ 50% | 0 | > 3% | + |
Tabela 4 - Definição de apneia e hipopneia, de acordo com resultados de
polissonografia.
Índice de apneia obstrutiva (IAO) = N.º AO / horas de sono
Índice de apneia (IA) = N.º AC e/ou AO / horas de sono
Índice de hipopneia = N.º hipopneias / horas de sono
Índice de apneia obstrutiva /hipopneia = IAO + Índice de hipopneia
Índice de apneia/hipopneia = IA + Índice de hipopneia
A polissonografia está indica se:
- Suspeita de SAOS – diagnóstico e estratificação de gravidade; realização precoce se fatores de risco presentes;
- Pós-amigdalectomia não curativa;
- Doentes não candidatos a cirurgia – ajuste de titulação de CPAP;
- Avaliação de apneia ou hipoventilação central – doenças musculares.
Outros exames complementares de diagnóstico que, se disponíveis, podem ser utilizados, na avaliação inicial de criança com roncopatia são:
- Gravação de vídeo e áudio do sono – sensibilidade elevada, com elevada correlação com polissonografia noturna; pode ser realizado como rastreio da necessidade de realização de polissonografia. Solicitar aos pais a gravação e valorizar apneia, microdespertares e esforço respiratório.
- Oximetria de pulso noturno – valor preditivo negativo elevado na presença de sintomas ou exame objetivo sugestivos.
Tratamento
A história clínica e o exame objectivo são fundamentais na avaliação da criança com suspeita de SAOS e na sua orientação diagnóstica e terapêutica
- Na presença de fatores de risco e de gravidade de doença, a criança deve ser referenciada a uma consulta diferenciada de Patologia do Sono.
- Na ausência de fatores de risco e gravidade, sempre que haja hipertrofia dos adenóides ou amígdalas, a criança deve ser referenciada à consulta de Otorrinolaringologia.
O tratamento da SAOS depende da gravidade da doença:
Tratamento da SAOS | ||
---|---|---|
Tratamento conservador (doença leve a moderada) |
Medidas de higiene do sono |
(Ver abaixo) |
Perda de peso | Se aplicável | |
Tratamento farmacológico (6 a 12 semanas) |
Corticóide nasal tópico Antagonista dos recetores de leucotrienos |
|
Tratamento de comorbilidades |
Rinite Refluxo gastroesofágico |
|
Tratamento cirúrgico |
Adenoamigdalectomi a |
Tratamento de eleição se hipertrofia amigdalina ou obesidade (melhoria do perfil lipídico e controlo glicémico) |
Risco de complicações pós-operatórias
|
||
Tratamento cirúrgico de malformações craniofaciais |
Casos selecionados | |
Ventilação não invasiva (doença grave) |
CPAP |
Indicações:
|
Tabela 5 – Tratamento da SAOS
Recomendações para os pais - Higiene do sono (recomenda-se a leitura do folheto Higiene do Sono da Criança e Adolescente elaborado pela APS em colaboração comcom a Soc. Portuguesa de Pediatria)
Até aos 2 anos | 3-13 anos | A partir dos 13 anos | |
---|---|---|---|
Duração (em 24h) |
12-16 horas (<12m) 11-14 horas (1-2A) |
10-13 horas (3-5A) 9-11 horas (6-13A) |
8-10 horas |
Regularidade | Horário de levantar e deitar pouco variável durante a semana. Durante o fim de semana ou férias, diferença máxima de 30 minutos a 1 hora. |
||
Ambiente | O quarto deve estar a temperatura amena, luminosidade baixa e sossegado. Deve ser associado a um local de descanso. Evitar usar a hora de dormir como um castigo. Evitar adormecer em local diferente da própria cama. |
||
Rotina de deitar |
Idealmente em direção ao quarto, com cerca de 20-30 minutos de duração.
A criança deve ser deitada sonolenta, mas acordada para aprender a adormecer sem a presença dos pais (podem ser úteis objetos de transição). |
||
Ingestão de líquidos |
Evitar a ingestão excessiva de líquidos, pelo menos uma hora, antes de dormir. | ||
Sestas |
Facilitada e promovida até aos 4-5
Quando está pronta para deixar de
|
Tabela 6 – Medidas de higiene do sono
Evolução
Em crianças saudáveis e sem comorbilidades, a adeno-amigdalectomia é resolutiva de sintomas diurnos e noturnos em 75 a 100% das crianças.
Se não tratada, pode condicionar perturbações do neurodesenvolvimento (hiperactividade, défice de atenção, alterações do comportamento), má progressão ponderal e, de acordo com a gravidade da doença, doença cardiovascular (elevação da pressão arterial diastólica, hipertrofia ventricular e hipertensão pulmonar).
Saber Mais
- Vias aéreas superiores;
- Obstrução;
- Apneia;
- Roncopatia;
- Polissonografia;
- Adenoamigdalectomia;
- CPAP;
- Higiene do Sono.
Bibliografia
- Kaditis AG, Alonso Alvarez ML, Boudewyns A, Abel F, Alexopoulos EI, Ersu R, et al. ERS statement on obstructive sleep disordered breathing in 1- to 23-month-old children. European Respiratory Journal. 2017;50(6):1700985.
- Saint-Fleur AL, Christophides A, Gummalla P, Kier C. Much Ado about Sleep: Current Concepts on Mechanisms and Predisposition to Pediatric Obstructive Sleep Apnea. Children (Basel). 2021;8(11).
- Stowe RC, Afolabi-Brown O. Pediatric polysomnography-A review of indications, technical aspects, and interpretation. Paediatr Respir Rev. 2020; 34:9-17.
- Vasconcelos A, Prior C, Estevão H, Loureiro HC, Ferreira R, Paiva T. Recomendações SPS-SPP: Prática da Sesta da Criança nas Creches e Infantários, Públicos e Privados. 2017
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