Preservação da fertilidade no doente oncológico pediátrico
Introdução
O cancro na infância e adolescência é raro, correspondendo a cerca de 1% da totalidade das neoplasias malignas. Constitui a segunda causa de morte nesta faixa etária, a seguir aos acidentes, sendo as doenças hemato-oncológicas, como as leucemias e linfomas, as mais frequentes. Os avanços no diagnóstico e tratamento da doença oncológica nas últimas décadas (taxa de sobrevivência actual de 83%, comparada com 45% nos anos setenta), associado ao aumento de incidência de doença oncológica em adolescentes e adultos jovens, têm contribuído para a existência de um número crescente de sobreviventes em idade reprodutiva.
A quimioterapia com agentes alquilantes, a radioterapia do Sistema Nervoso Central e pélvica e a cirurgia do aparelho geniturinário, estão associados a efeitos deletérios na função reprodutiva, nomeadamente implicações negativas nos órgãos reprodutores, desenvolvimento pubertário, regulação hormonal, fertilidade e função sexual, com importante diminuição da qualidade de vida dos sobreviventes de cancro.
A oncofertilidade surge, neste contexto, como uma nova área clínica de intervenção multidisciplinar que pretende ir ao encontro das necessidades dos doentes oncológicos, relativamente ao seu potencial reprodutivo. Apesar de diversas directrizes para preservação da fertilidade e avaliação da saúde reprodutiva em doentes com diagnóstico de cancro na infância e adolescência terem sido publicadas por várias organizações nacionais e internacionais, incluindo a Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO) e da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva (ASRM), a adesão a estas orientações pelos Oncologistas ainda não está documentada.
Risco de infertelidade em doentes oncológicos
A infertilidade é, por definição, a incapacidade de um casal obter uma gravidez após um ano de relações sexuais frequentes e desprotegidas. Existem diversos estudos epidemiológicos sob a temática “fertilidade em sobreviventes de doença oncológica”, demonstrando de modo unanime que a probabilidade desses doentes terem descendência é significativamente inferior, quer no sexo masculino quer feminino.
Factores de risco de infertilidade em doentes oncológicos
As taxas de infertilidade permanente ou subfertilidade, após tratamentos oncológicos, descritas são variáveis e influenciadas por múltiplos factores (relacionados com o próprio doente, com o tratamento realizado ou a realizar e ainda com a doença oncológica).
No sexo masculino a infertilidade pode resultar da própria doença oncológica, problemas anatómicos (por exemplo, ejaculação retrógrada ou anejaculação), insuficiência hormonal primária ou secundária ou, mais frequentemente, de danos ou destruição da linha de células germinativas. Os efeitos mensuráveis da quimioterapia ou radioterapia incluem diminuição do número de espermatozóides, motilidade, morfologia e integridade do ADN.
No sexo feminino o factor idade é muito relevante, uma vez que o potencial reprodutivo diminui de forma fisiológica com o envelhecimento. A fertilidade pode ser comprometida por qualquer tratamento que diminua o capital folicular, afecte o equilíbrio hormonal ou interfira com o funcionamento dos ovários, trompas, útero ou colo do útero. Alterações anatómicas ou vasculares no útero, colo do útero ou na vagina (após cirurgia ou radioterapia) também podem interferir na taxa de gravidez bem como condicionar o desfecho.
A crescente complexidade dos tratamentos oncológicos, a utilização frequente de fármacos em associação e o desenvolvimento de novos fármacos antineoplásicos, ainda não estudados quanto ao seu efeito na fertilidade humana, aliam-se à multiplicidade de factores já referidos (idade, doses administradas, entre outros) e tornam a quantificação do risco em cada doente, uma tarefa delicada. As orientações da ASCO, actualizadas em 2013, disponibilizam uma categorização do risco de infertilidade associado aos diversos tratamentos da doença oncológica, e devem ser utilizadas como suporte na avaliação personalizada do risco de infertilidade do doente oncológico.
Risco de infertilidade associado à doença oncológica
No que diz respeito à fertilidade feminina, o impacto da doença oncológica parece ser diminuto ou mesmo inexistente. Contudo este assunto é ainda bastante controverso. Nesse âmbito foi publicada em 2012 uma meta-análise de sete estudos retrospetivos e de estudos controlados que concluiu que as mulheres com antecedentes de patologia maligna, mesmo antes da terapêutica antineoplásica, têm uma probabilidade mais elevada de obtenção de um menor número de ovócitos, após hiperestimulação ovárica controlada para punção folicular, quando comparadas com as mulheres da mesma idade do grupo de controlo.
No sexo masculino, pelo contrário, existe evidência que alguns tipos de doença oncológica, como o cancro do testículo e o linfoma Hodgkin, estão associados por si só a contagens mais baixas de espermatozoides, mesmo antes de iniciar tratamentos. Parecendo esse efeito mediado por mecanismos imunológicos ou citotóxicos, ainda não completamente esclarecidos.
Risco de infertilidade associado ao tratamento da doença oncológica
Cirurgias do aparelho reprodutor
As cirurgias do aparelho reprodutor masculino (orquidectomia, sobretudo se bilateral) e feminino (histerectomia e ooforectomia bilateral), têm impacto directo na função reprodutiva, com possibilidade de infertilidade permanente. No sexo feminino a ooforectomia bilateral pode estar indicada em alguns tumores do ovário, que embora tendo uma baixa incidência (1% dos cancros ginecológicos) ocorrem mais frequentemente na infância e adolescência, nomeadamente os casos de disgerminomas, teratomas imaturos e gonadoblastomas.
Terapêutica gonadotóxica (quimioterapia / radioterapia)
Considera-se que o risco de infertilidade associado à terapêutica antineoplásica é elevado se superior a 80%, intermédio se entre 20 a 80% e baixo se ≤ a 20%.
1. Quimioterapia
A extensão do dano causado pela quimioterapia está relacionada com a idade do doente, o tipo de fármaco e o regime utilizado.
No sexo masculino, os antineoplásicos causam, predominantemente, lesões no epitélio seminífero e, consequentemente, alterações da espermatogénese, embora possam também danificar as células de Leydig, responsáveis pela produção de testosterona.
No caso específico da terapêutica antineoplásica no sexo feminino, a toxicidade directa no ovário pode ocorrer por deplecção direta do capital folicular (ex. agentes alquilantes), mas também por efeitos a nível celular, mediados por stress oxidativo (ex. ciclofosfamida e antraciclinas) ou ainda por toxicidade vascular (ex. doxorubicina).
Pelo facto de se utilizarem regimes terapêuticos combinados é difícil quantificar a gonadotoxicidade individual de cada um dos fármacos (Quadro 1), no entanto, avanços na quimioterapia têm levado ao desenvolvimento de regimes de tratamento menos gonadotóxicos para muitos tipos de cancro, como o linfoma de Hodgkin.
Risco elevado | Ciclofosfamida; Ifosfamida; Melfalan; Busulfan; Mustarda nitrogenada Procarbazina; Clorambucil |
Risco intermédio | Cisplatina e Carboplatina, com baixa dose cumulativa Adriamicina |
Baixo risco | Tratamento do linfoma de Hodgkin sem agentes alquilantes Bleomicina; Vincristina; Metrotexato |
2. Radioterapia
Sexo Feminino: O risco de compromisso na função ovárica varia consoante o local irradiado, a dose de irradiação corporal e a idade da doente. A irradiação corporal total prévia à transplantação da medula óssea está associada a um elevado risco de falência ovárica. Todos os órgãos reprodutivos podem ser afectados pela irradiação e em geral uma dose de 2 Gy aplicadas na região gonádica pode destruir mais de 50% da reserva folicular ovárica. Por outro lado, a irradiação do útero provoca fibrose e alterações na vascularização uterina – mais grave nas mulheres mais novas. Por fim, também a irradiação cranioespinhal na dose de 25 Gy pode ter efeito gonadotóxico.
Sexo Masculino: Os espermatozóides são extremamente sensíveis à radiação independentemente da idade. As células de Leydig, por outro lado, são altamente sensíveis à radiação antes do início da puberdade, no adulto as células tornam-se mais resistentes (doentes adultos podem manter a função das células de Leydig apesar de se tornarem azoospérmicos). O elevado risco a nível da função testicular verifica-se quando é efectuada irradiação corporal total, para transplante de medula óssea ou de células estaminais, e se a irradiação testicular for superior a 2.5 Gy no homem adulto ou superior a 6 Gy nos rapazes pré-puberes. A radioterapia cranioespinhal na dose superior a 25 Gy tem também um risco intermédio de afectar a função testicular.
Indicações para a preservação da fertilidade
Sempre que possível deve ser proposta, a todos os doentes (crianças e jovens e os seus tutores legais) com diagnóstico recente de cancro, uma consulta de medicina da reprodução, num contexto multidisciplinar. A equipa deve explicar aos pais e crianças/jovens doentes, o risco infertilidade das intervenções e tratamentos e possibilidades disponíveis para preservação da fertilidade, antes de iniciar qualquer terapêutica potencialmente gonadotóxica. Esta discussão deve ocorrer logo após o diagnóstico, uma vez que algumas intervenções para preservação da fertilidade podem levar 2-3 semanas, o que poderia atrasar o início do tratamento.
A melhor abordagem deve ser individualizada, dependendo do tipo de tratamento, do tempo disponível, da idade do doente, da doença específica, dos custos e questões éticas. A preservação da fertilidade deve ser igualmente equacionada no contexto de patologia benigna (lúpus eritematoso sistémico, artrite juvenil idiopática, glomerulonefrite) quando se tem de recorrer a terapêutica potencialmente gonadotóxica.
Técnicas de preservação da fertilidade no homem
Cirurgia conservadora
Nos doentes com cancro do testículo a produção hormonal e de espermatozoides pode ser mantida através do recurso a uma orquidectomia parcial. Nos casos de abordagem cirúrgica conservadora do cancro do testículo devem avaliar-se os benefícios versus o risco de recorrência tumoral.
Proteção das gónadas
A proteção das gónadas é o procedimento standard durante a realização de radioterapia, no sentido de reduzir a exposição à radiação dos órgãos reprodutores e preservar a fertilidade.
Criopreservação de esperma
Aos doentes do sexo masculino que necessitem de tratamentos potencialmente gonadotóxicos deve ser oferecida a possibilidade de criopreservar esperma antes do início do tratamento da sua doença de base, sendo o método preferencialmente recomendado em adultos e rapazes púberes. Trata-se de uma técnica simples, rápida e eficaz pelo que se justifica sempre informar e propor ao doente.
É possível a obtenção de espermatozóides maduros nos rapazes em estadio III de Tanner. A criopreservação de esperma foi reportada com sucesso desde os 13 anos com uma elevada prevalência de contagem de espermatozoides e de volume de esperma. Devem ser efetuadas 3 colheitas após um período de abstinência de pelo menos 48horas entre as amostras. Posteriormente, quando o doente assim o pretender, o esperma criopreservado poderá ser usado para inseminação intrauterina (IIU), fertilização in vitro (FIV) ou injeção intracitoplasmática de espermatozóides (ICSI).
No que respeita aos riscos para a descendência, os dados actualmente disponíveis indicam que não há um risco aumentado de malformações congénitas ou de doença oncológica nas crianças nascidas com utilização de esperma criopreservado de sobreviventes de doença oncológica.
Criopreservação de tecido testicular
Em adultos, esta técnica é uma alternativa à criopreservação de esperma, quando não é possível a ejaculação ou quando o esperma ejaculado não contém espermatozóides. As amostras são obtidas através de biópsia, preparadas e criopreservadas. Após terminar os tratamentos, e quando o doente assim pretender, as amostras podem ser descongeladas e os espermatozoides utilizados para fecundação por ICSI. Em crianças ou jovens pré-púberes, a criopreservação de tecido testicular é a única opção de preservação da fertilidade, embora seja uma técnica experimental.
Técnicas de preservação da fertilidade na mulher
Cirurgia conservadora
A opção por uma cirurgia conservadora é cada vez mais uma opção no tratamento das doentes com cancro do colo, do endométrio e do ovário (principalmente nos tumores borderline). No carcinoma do ovário a cirurgia conservadora deve ainda ser considerada quando o tumor é diagnosticado numa fase precoce, é bem diferenciado e com baixo potencial de malignidade.
Transposição ovárica
A transposição ovárica ou ooforopexia pode ser oferecida quando a doente vai ser submetida a radioterapia pélvica, por forma a minimizar a exposição dos ovários à radiação. No entanto, devido à dispersão de radiação, as doentes devem ser informadas de que esta técnica não é totalmente eficaz. Esta técnica pode ser associada à colheita de tecido ovárico para criopreservação.
Criopreservação de ovócitos
A criopreservação de ovócitos pode ser opção nas jovens pós-púberes, compreendendo uma fase inicial de estimulação hormonal, seguida de punção folicular e criopreservação dos ovócitos obtidos por vitrificação.
A técnica de maturação in vitro (IVM) dos ovócitos é considerada como uma estratégia complementar na preservação da fertilidade, tendo-se verificado resultados satisfatórios, contudo é ainda uma técnica em desenvolvimento.
Criopreservação de tecido ovárico
A criopreservação de tecido ovárico implica a colheita, por cirurgia laparoscópica ou laparotomia, de um fragmento ou da totalidade do ovário e pode ser planeada pouco depois do diagnóstico do cancro, não requerendo estimulação hormonal ovárica.
O tecido ovárico é devidamente preparado, isolando-se fragmentos do córtex que são, então, criopreservados. Quando a mulher assim o pretender, os fragmentos são descongelados e poderão ser enxertados no ovário remanescente - transplante ortotópico - ou noutra localização –transplante heterotópico.
Nas crianças pré-púberes que têm de se submeter a tratamentos gonadotóxicos com elevado risco de falência ovárica, este constitui o método possível para preservação da fertilidade. É preferível que a colheita seja concretizada antes do início da quimioterapia contudo é tolerável que nas mulheres jovens e crianças, com elevado número de folículos primordiais que a técnica seja realizada após os primeiros ciclos.
Recomendações
A maioria das crianças, adolescentes e jovens adultos com diagnóstico de cancro tornam-se sobreviventes a longo prazo.
A preservação da fertilidade nas crianças é um assunto delicado, que levanta questões éticas importantes, exigindo uma abordagem multidisciplinar.
Os profissionais de saúde devem estar preparados para discutir o impacto negativo na saúde reprodutiva dos tratamentos gonadotóxicos. Para permitir que os doentes com cancro tomem decisões no que se relaciona com o potencial reprodutivo, a informação sobre o impacto do tratamento do cancro na fertilidade e as opções disponíveis deve ser apresentada aos doentes de forma atempada.
A preservação da fertilidade deve ser proporcionada num contexto de segurança, sem o risco de atrasar o tratamento do cancro.
A referenciação atempada pode aumentar as probabilidades de um aconselhamento adequado e melhorar o sucesso da preservação da fertilidade.
A colaboração interdisciplinar entre pediatras, oncologistas, hematologistas e endocrinologistas reprodutivos, o desenvolvimento de guidelines clínicas e de atividades educacionais deve ser encorajada.
A puberdade com o início da produção do esperma no rapaz e o aparecimento da menarca nas meninas torna possível o recurso a técnicas de preservação da fertilidade menos invasivas e com maior potencial de sucesso no futuro (criopreservação de esperma e criopreservação de ovócitos após estimulação ovárica controlada). Nas meninas após a menarca, não havendo tempo para estimulação ovárica controlada pela necessidade de tratamento potencialmente gonadotóxico imediato, pode ser oferecida a possibilidade de criopreservação de tecido ovárico.
Nas crianças, deve ser abordado com os pais que, se futuramente os seus filhos tiverem compromisso da função gonadal, no que diz respeito à fertilidade existe sempre a possibilidade de recurso a gâmetas de dador.
No âmbito do Serviço Nacional de Saúde, os procedimentos associados à realização das técnicas e à congelação dos gâmetas recolhidos não comportam quaisquer custos para os doentes oncológicos.
Glossário
Oncofertilidade - Campo interdisciplinar de estudo que concilia conhecimentos em oncologia e endocrinologia reprodutiva para o aperfeiçoamento das estratégias de preservação da função reprodutiva em sobreviventes de cancro.
Infertilidade - Incapacidade de um casal obter uma gravidez após um ano de relações sexuais frequentes e desprotegidas.
Terapêutica Gonadotóxica - Terapêutica farmacológica ou com recurso a radioterapia que condicione um aumento da atrésia folicular expondo os doentes a um risco significativo de falência gonádica (ovárica e testicular)
Preservação da fertilidade - Técnicas desenvolvidas para proteger e/ou preservar a fertilidade nas mulheres e homens com cancro.
Bibliografia
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Silva CM, Almeida Santos AT. Oncofertilidade- Preservação da fertilidade em doentes Oncológicos, 1ªEdição, janeiro 2016
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