Introdução
Definição
A infeção por Neisseria gonorrhoeae é um problema global. Nos EUA é a 2ª doença mais reportada e a 2ª infeção sexualmente transmissível mais frequente. Gonorreia é causada pela bactéria Gram-negativa Neisseria gonorrhoaea e quando sintomática nos homens manifesta-se por uretrite e nas mulheres como cervicite. Quando não é tratada pode causar epididimite nos homens e doença inflamatória pélvica nas mulheres. Estas situações quando não resolvidas, poderão resultar em infertilidade, gravidez ectópica e dor pélvica crónica. Menos frequentemente, a infeção gonocócica poder-se-á complicar numa situação invasiva, resultando na síndrome artrite-dermatite, artrite supurativa, endocardite e meningite.
Epidemiologia
A incidência global precisa da gonorreia é difícil de determinar devido a falha de sistema a nível da notificação. Em 2008, a Organização Mundial de Saúde estimou em 106 milhões o número mundial de casos de gonorreia na população adulta e o European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC) determinou a gonorreia como sendo a 2ª causa bacteriana mais notificada de infeção sexualmente transmissível na Europa, a seguir à infeção por Chlamydia trachomatis. Neste continente, o número de casos aumentou 62% desde 2008. Em 2012 foram notificados 47.387 casos de gonorreia em 29 países da União Europeia, com uma taxa de incidência global de 15.3/100.000 habitantes. Portugal tem uma das taxas mais baixas a nível europeu (≤ 1.5/100.000 habitantes), provavelmente devido às características intrínsecas da notificação passiva dos sistemas de vigilância que favorecem a subnotificação de casos. Os indivíduos que se mantêm infetados são os responsáveis pela manutenção da doença e pela resistência da mesma aos antibióticos.
História Clínica
Anamnese
Os fatores de risco para a gonorreia incluem: mudança recente de parceiro sexual, múltiplos parceiros sexuais, idade jovem, nível socioeconómico baixo, consumo de drogas e antecedentes de gonorreia. Existe uma forte associação com a infeção por HIV, sendo ambas catalisadoras de infeção. A Neisseria leva a ativação das células CD4 infetadas pelo HIV, resultando numa maior expressão e ativação destas. Neisseria gonorrhoeae é uma bactéria que infeta exclusivamente o homem e transmite-se por contacto sexual. Pode também ser transmitida ao recém-nascido durante o parto e resultar em infeção perinatal. Esta infeção ocorre por etapas começando por a bactéria se ligar à mucosa das células, invadindo-as, proliferando-se e causando uma resposta inflamatória local ou uma doença sistémica. A adesão celular pela bactéria faz-se através de várias proteínas membranares, nomeadamente: PilC, Opa, PorB, LOS, L12 e Ng-OmpA. A seguir, a bactéria invade as células e esta característica permite-lhe proteger-se do sistema imunitário. A adesão e invasão do epitélio uretral implica as proteínas PilC e LOS e a nível do epitélio cervical, envolve o recetor tipo 3. Menos frequentemente, a infeção pode ser sistémica.
Exame objectivo
A infeção genital, nomeadamente a cervical é a mais frequente causada pela Neisseria. As infeções urogenitais possíveis são:
Cervicite – o colo do útero é o local mais comum para esta infeção na mulher e cerca de 70% das mulheres estão assintomáticas. Normalmente são 10 dias de incubação e quando há sintomas estes manifestam-se por prurido vaginal e corrimento mucopurulento e algumas mulheres podem ter episódios de hemorragia uterina anómala. A dor abdominal e disparêunia não são muito frequentes e quando estão presentes, deve-se suspeitar de infeção do aparelho genital superior. À observação, o colo do útero pode ter um aspeto normal ou apresentar-se hiperemiado e friável ao toque com a presença de corrimento mucopurulento com cheiro. No entanto, estas características não são patognomónicas desta infeção.
Uretrite – esta bactéria pode ser isolada na uretra em 90% das mulheres com cervicite, logo uretrite isolada é rara. Nas mulheres jovens, os sintomas são de disúria, urgência miccional e polaquiúria. Na maioria das vezes, a infeção acaba por ser assintomática.
Doença Inflamatória Pélvica (DIP) – ocorre em 10-20% dos casos de mulheres com cervicite, sendo a Gonorreia responsável por 40% de todas as DIP. Visto a elevada incidência de infeção assintomática, a DIP pode ser a 1ª manifestação. Os principais sintomas são dispareunia, dor pélvica e abdominal e hemorragia uterina anómala. Ao exame objectivo, a mobilização cervical e uterina são dolorosas tal como as áreas anexiais, no entanto é também um quadro inespecífico.
Perihepatite (Síndrome Fitz-Hugh-Curtis) – Inflamação da cápsula de Glisson que envolve o fígado e que pode estar associada a doença inflamatória pélvica causada pela Neisseria. Atualmente este síndrome associa-se mais comumente a infeção por Chlamydia trachomatis em cerca de 4%. Muito raramente pode apresentar-se no sexo masculino. Os sintomas mais comuns são dor pleurítica no hipocôndrio direito, náuseas, vómitos, febre e alterações ligeiras analíticas da função hepática.
Bartolinite –Inflamação das Glândulas de Bartholin que ocorre associado à Gonorreia em 6% por casos. A clínica é edema e tumefação vaginal associado a grande desconforto e dor.
Complicações na gravidez – A infeção urogenital gonocócica na grávida tem vindo a estar associada a corioamnionite, rotura prematura de membranas, parto pré-termo e aborto espontâneo.
A transmissão da infeção gonocócica materna para o recém-nascido ocorre em 30 a 50% dos casos e manifesta-se com faringite, artrite, conjuntivite e infeção sistémica.
Infeção Extragenital – Neisseria gonorrhoeae pode infetar o reto e a faringe, no entanto as infeções nestes locais são tipicamente assintomáticas. Raramente, pode também disseminar-se e causar uma doença sistémica.
Proctite – No homem, esta infeção ocorre mais comumente no contacto sexual homossexual, sendo rara no homem heterossexual. Na mulher, é mais frequente, podendo esta ocorrer devido à infeção genital pela proximidade entre a vaginal e o reto, mesmo na ausência de contacto sexual. Em ambos os casos, a proctite é, na maioria das situações, assintomática, no entanto quando estão presentes, manifestam-se por: tenesmo, dor anoretal, obstipação, hemorragia e muco retal. A sintomatologia da proctite gonocócica não é distinguida de outras proctites infecciosas.
Faringite – Causada a maioria das vezes por contacto sexual e a sua incidência ronda os 2 a 6%. Predominantemente esta infeção é assintomática, mas pode estar presente tosse, odinofagia e adenopatias cervicais.
Infeção Disseminada – A disseminação da infeção ocorre em 0,5 a 3% dos casos e depende do sistema imunitário do doente e de fatores microbianos locais. Pode manifestar-se por um quadro de artrite purulenta ou tríade de tenosinovite, dermatite e poliartralgias. Meningite, endocardite e osteomielite são raras.
Conjuntivite – Ocorre mais comumente em recém-nascidos de mulheres infetadas não tratadas. Em adultos e adolescentes, casos esporádicos podem ocorrer devido ao contacto ano-genital. Os sintomas são hiperemia conjuntival, exsudado ocular e senão for tratada pode levar a úlcera da córnea com perfuração e cegueira.
Diagnóstico Diferencial
Outras infeções sexualmente transmissíveis como por Chamydia trachomatis, Trichomonas vaginalis, Mycoplasma genitalium, Herpes simplex e Sífilis podem manifestar-se com sintomatologia semelhante à Gonorreia, como tal é necessário valorizar também estes agentes patogénicos.
Outras infeções não sexualmente transmissíveis e quadros infeciosos também podem mimetizar a Gonorreia, nomeadamente doença inflamatória intestinal, doenças infiltrativas, entre outras.
Exames Complementares
Patologia Clínica
O quadro clínico associado à Neisseria gonorrhoeae normalmente é diagnosticado pela história clínica e exame objectivo. Na maioria das vezes, perante a suspeita desta infeção, é estabelecido o tratamento antibiótico empírico antes do diagnóstico microbiológico.
No entanto, o diagnóstico microbiológico é recomendado devido à baixa sensibilidade e especificidade no diagnóstico clínico. Perante a suspeita de gonorreia, deve fazer-se a pesquisa da Neisseria gonorrhoeae e também da Chlamydia trachomatis, devido à elevada prevalência destas duas co-infeções em mulheres sexualmente ativas com menos de 25 anos. O rastreio destas infeções é mais rentável em áreas com elevada prevalência destas infeções, evitando casos de doença inflamatória pélvica e infertilidade de causa tubária (podendo, inclusivamente em certas situações, dispensar o estudo das trompas com histerossalpingografia).
A PCR (reação em cadeia pela polimerase) deteta a presença de Neisseria na urina ou nas secreções do endocolo em 48h, sendo um teste bastante sensível e rápido. A sua deteção faz-se através da colheita do exsudado no endocolo e respetivo transporte em tubo seco. O método de colheita através do exsudado do endocolo ou da urina apresenta a mesma sensibilidade, pelo que, poder-se-á optar pela colheita da urina pois existem unidades de saúde que não têm disponível tubos secos para a colheita no endocolo.
A cultura também pode ser realizada principalmente em infeções persistentes e quando há suspeita de resistência ao antibiótico, sendo possível requisitar o TSA (teste de sensibilidade aos antibióticos), contudo demora mais tempo.
Quando a técnica por PCR não está disponível, poder-se-á utilizar o método de microscopia, pesquisa de antigénio e métodos genéticos.
Relativamente ao parceiro sexual, mesmo estando este assintomático, deve ser feito o rastreio da Gonorreia.
Em pacientes com sintomatologia extragenital, nomeadamente proctite, conjuntivite e faringite e com comportamentos de risco, deve ser feita colheita também destas mucosas e pedido o diagnóstico microbiológico.
Um número considerável de infeções a Neisseria é assintomática, como tal em doentes com fatores de risco, deve ser oferecido o rastreio. Consideram-se grupos de risco:
- Mulheres e homens HIV positivos
- Mulheres sexualmente ativas
- Pacientes com múltiplos parceiros sexuais
- Homens homossexuais
- Pacientes sexualmente ativos que residam em áreas com elevada prevalência da infeção a Neisseria gonorrhoeae
- Pacientes com infeções sexualmente transmissíveis anteriores
O diagnóstico nos pacientes assintomáticos é igual aos sintomáticos, no entanto no caso de pesquisa na uretra nos homens, aqui esta pode ter uma sensibilidade mais baixa.
Tratamento
Antibioterapia
O tratamento para a Gonorreia é antibioterapia e os princípios que devem ser seguidos são:
- O antibiótico escolhido deve ser eficaz para todos os locais possíveis de infeção (eficácia >95%)
- Bem tolerado
- Recomendar o tratamento em dose única quando possível
Devido ao aumento da resistência aos antibióticos e à elevada co-infeção com Chamydia trachomatis, o tratamento da Gonorreia não complicada tornou-se mais complexo. Atualmente, recomenda-se:
- Ceftriaxone 250mg intramuscular em dose única + Azitromicina 1g oral em dose única
- Ceftriaxone 250mg IM dose única + Doxiciclina 100mg 12/12h durante 7 dias em casos de intolerância à azitromicina (a resistência à doxiciclina é maior)
Existem outros esquemas alternativos, na ausência de ceftriaxone, intolerância a esta ou alergia à penicilina, tais como:
- Azitromicina 2g oral dose única + Gentamicina 250mg IM
- Cefotaxime 500mg IM dose única + Azitromicina 2g oral dose única
O tratamento da infeção extragenital, tais como proctite, faringite e conjuntivite é o mesmo, tal como nas grávidas, devendo aqui ser evitada a doxicilina devido ao seu efeito teratogénico.
Cirurgia
A cirurgia é reservada para os casos complicados de infeção a Neisseria, nomeadamente doença inflamatória pélvica complicada com abcesso tubo-ovárico que não cede à antibioterapia. O gold-standart deverá ser a laparoscopia diagnóstica com drenagem do abcesso e lise de aderências, tentando poupar as estruturas ováricas, principalmente em mulheres em idade reprodutiva.
Evolução
Os doentes que cumpriram o tratamento recomendado (combinação antibiótica com ceftriaxone) e ficaram assintomáticos, não requerem a realização de um teste para confirmar a cura. Contudo, é recomendado realizar a confirmação da cura em doentes que não fizeram a terapêutica com cefriaxone.
Os métodos usados para o teste de confirmação da cura são os mesmos do diagnóstico, no entanto se dor usado a cultura esta deverá ser realizada 7 dias após o término do antibiótico; no caso da PCR deve ser feita apenas 14 dias, pela maior possibilidade de falsos positivos.
Todos os doentes devem ser aconselhados a voltarem se os sintomas persistirem ou recorrerem devido à possibilidade de resistência antibiótica. A maioria das suspeitas da falha antibiótica, são reinfeções, como tal é recomendada a repetição do tratamento com o mesmo esquema (ceftriaxone + azitromicina).
Recomendações
Pacientes com o diagnóstico de Gonorreia estarão em risco para novas reinfeções e infeções por outros microorganismos, como tal devem ser aconselhados a serem reobservados 3 meses após.
Os pacientes devem também ser esclarecidos acerca dos seus comportamentos e fatores de risco, o uso de preservativo deve ser aconselhado e alertados para os sinais e sintomas de infeções sexualmente transmissíveis.
Bibliografia
- Epidemiology and pathogenesis of Neisseria gonorrhoeae infection, Gregory A Price, PhD et al, May 2016, UpToDate
- Clinical manifestations and diagnosis of Neisseria gonorrhoeae infection in adults and adolescentes, Khalil G Ghanem et al, May 2016, UpToDate
- Treatment of uncomplicated gonococcal infections, Heidi Swygard et al, May 2016, UpToDate
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