Gastrenterite aguda
Introdução
Definição
Diminuição da consistência das fezes (pastosas ou líquidas) e/ou aumento da frequências das evacuações (3 ou mais em 24h) com ou sem febre ou vómitos. Tem uma duração habitual de 7 dias e não ultrapassa os 14.
Uma alteração da consistência das fezes é mais indicativa de diarreia do que o aumento do número de dejecções.
Epidemiologia
Todos os anos, cerca de 0.71 milhões de crianças morrem de gastroenterite aguda, Estima-se que a gastroenterite aguda seja responsável, anualmente, por 9% das mortes em crianças, o que faz desta a segunda causa de morte em idade pediátrica.
Na Europa, a gastroenterite aguda apresenta uma incidência de 0.5 a 2 episódios por criança (com idade inferior a 3 anos) por ano. O Rotavírus é o agente mais frequente na Europa, responsável por 50-70% dos casos de hospitalização por GEA na Europa e 28% em Portugal. O Norovírus, o segundo mais frequente, é causa de 10-15% das hospitalizações por GEA na Europa (percentagem que tem vindo a crescer em países com elevada taxa de vacinação anti-rotavírus) e associa-se a um padrão mais grave de diarreia.
Na Europa, as GEA bacterianas, com incidência inferior às virias, são causadas maioritariamente por Salmonella e Campylobacter. O Clostridium difficile tem vindo a tornar-se uma causa cada vez mais frequente de diarreia adquirida na comunidade.
A Giardia é uma causa pouco frequente no hospedeiro imunocompetente. O Crytosporidium pode causar GEA na criança imunocompetente.
A presença de protozoários não patogénicos nas fezes é frequente em crianças com história de viagem recente a países tropicais.
História Clínica
Anamnese
A maioria das gastroenterites agudas é adquirida por transmissão fecal-oral, através da ingestão de comida ou água contaminadas. Desequilíbrios da flora saprófita intestinal, após antibioterapia, podem provocar o crescimento de microrganismos que provocam diarreia, como o Clostridium.
A história deve focar-se em três aspectos fundamentais: diferenciação entre gastroenterite aguda e outras causas de vómitos e/ou diarreia; gravidade da doença; grau de desidratação.
Deve avaliar-se as características das fezes (pastosas/ líquidas, com muco, sangue ou pus), volume, número de dejecções nas últimas 24h e tempo decorrido desde a última dejecção. Características dos vómitos (alimentares, biliosos, com sangue), número de episódios nas últimas 24h, tempo decorrido desde o último episódio.
Devem ser avaliados sintomas sugestivos de infecção: febre, náuseas, dor abdominal, mialgias, exantema, rinorreia, odinofagia e tosse.
O grau de desidratação deve ser avaliado realizando algumas perguntas sobre o débito urinário (tempo decorrido desde a última micção, número de fraldas com urina, cor da urina); actividade da criança (prostração); quantidade de líquidos ingerida; último peso antes da GEA.
Podem também ser feitas algumas perguntas no sentido de avaliar a causa da gastroenterite aguda e outras causas de diarreias: alimentos ingeridos (cogumelo selvagens, carne picada mal cozinhada, ovos, maionese, marisco, entre outros); ingestão de medicamentos (laxantes, antibióticos), ou de tóxicos; contexto epidemiológico (viagens, animais, sintomas semelhantes nos contactos próximos); vacinas (anti-rotavírus, hepatite A, hepatite B).
Exame objectivo
O exame objectivo deve focar-se na avaliação do grau de desidratação. O sinal mais fidedigno é a percentagem de perda de peso 9% (grave). Não sendo possível aceder a esta informação, o grau de desidratação deve ser estimado através de alguns sinais físicos: aumento da frequência cardíaca, diminuição da pressão arterial, mucosas secas, olhos encovados, alteração do nível de consciência e de actividade, prolongamento do tempo de reperfusão capilar, diminuição do turgor cutâneo e padrão respiratório anormal. Os últimos três são os mais fiáveis; a diminuição da tensão arterial é um sinal tardio.
O grau de desidratação pode também ser avaliado através da Escala Clínica de Desidratação, que entra em conta com quatro sinais: aparência geral (saudável, irritável/letárgico/avidez por líquidos, sonolento/comatoso), olhos (brilhantes/olhar vivo, ligeiramente envocados, extremamente encovados), mucosas (húmidas, pastosas, secas), lágrimas (mantidas, diminuídas, ausentes).
Deve avaliar-se também sinais de infecção (febre, dor à palpação abdominal) ou sinais sugestivos de etiologias específicas e complicações (rinorreia, hiperémia da orofaringe, hiperémia das conjuntivas, petéquias, edema articular).
Sempre que possível, deve avaliar-se as características das fezes e dos vómitos.
Diagnóstico Diferencial
Na diarreia infecciosa (90% das diarreias agudas), a principal questão que se coloca é a identificação do agente. Algumas características clínicas ajudam no diagnóstico diferencial.
Após a ingestão de toxinas pré-formadas (Bacillus cereus, Staphylococcus aures, Clostridium perfringens), bactérias produtoras de enterotoxinas (Vibrio colerae, E. coli enterotoxinogénica) ou enteroanderentes (E. coli enteropatogénica e enteroaderente, Cryptospodidium, hemintas) ocorre diarreia aquosa profusa. Inicia-se algumas horas após a ingestão dos primeiros dois agentes, habitualmente acompanhada de vómitos frequentes e de febre baixa ou ausente. Após a ingestão dos últimos, ocorre diarreia associada a dor abdominal tipo cólica com vómitos menos frequentes e com febre mais alta.
Os microrganismos invasivos (Rotavírus, Salmonella, Campylobacter, Yersinia, Shigella, E.coli enteroinvasiva, Entamoeba) ou produtores de citotoxinas (Clostridium difficile e E. coli hemorrágica) causam febre alta e dor abdominal. Os primeiros (mormente Shigella e Entamoeba) provocam frequentemente diarreia sanguinolenta.
A diarreia do viajante é maioritariamente causada por E. coli, Campylobacter, Shigella, Salmonella, Norovírus, Coronavírus.
A ingestão de certos alimentos relaciona-se com alguns microrganismos particulares: carne picada mal cozinhada (E. coli O157:H7); maionese (Staphylococcus aureus e Salmonella); marisco (hepatite A).
Na criança imunossuprimida, os microrganismos entéricos comuns causam doença mais grave. Alguns agentes oportunistas podem também causar gastroenterite aguda, nomeadamente Citomegalovírus, Herpes simplex, Isospora, Microspora.
Em doentes hospitalizados, é particularmente comum a diarreia por Clostridium difficile.
Algumas manifestações sistémicas associadas à gastroenterite infecciosa podem sugerir diagnósticos específicos. Artrite, uretrite ou conjuntivite podem acompanhar infecções causadas por Salmonella, Campylobacter, Shigella e Yersinia. A E. coli enterohemorrágia (O157:H7) e a Shigella podem associar-se a síndrome hemolítico-urémica. A diarreia pode, ainda, ser uma manifestação de uma doença infecciosa de outro órgão, como acontece na hepatite viral.
No diagnóstico diferencial da gastroenterite aguda, deve colocar-se a hipótese de outras causas de diarreia. Os fármacos são a causa mais comum, mormente antibióticos, anti-hipertensores, AINES, quimioterápicos, broncodilatadores, antiácidos e laxantes.
A diarreia pode acompanhar a doença enxerto-versus-hospedeiro em doentes transplantados.
Diarreia não infecciosa com compromisso sistémico sugere ingestão de organofosforados, amanita, toxinas do marisco (cinguatera e escombroíde) ou recção anafilática.
A doença intestinal inflamatória pode ter um início abrupto semelhante a uma gastroenterite aguda.
Exames Complementares
Patologia Clínica
Os doentes com gastroenterite aguda, regra geral, não necessitam de exames auxiliares de diagnóstico.
A investigação etiológica (avaliação microbiológica das fezes através de coprocultura e da pesquisa de vírus, toxina de Clortridium, ovos e parasitas nas fezes) deve ser considerada no caso de doentes crónicos (doença inflamatória intestinal e doença oncológica), sintomas graves ou doença prolongada.
Os electrólitos devem ser avaliados nos casos de desidratação moderada e grave e em todas as crianças em que se inicie hidratação endovenosa.
Imagiologia
A endoscopia é útil no diagnóstico diferencial com doença inflamatória intestinal
Tratamento
Cirurgia
O tratamento cirúrgico não está indicado na gastroenterite aguda excepto nas complicações, como a formação de abcessos.
Antibioterapia
Por norma, não é necessária antibioterapia. É recomendada, no entanto, em alguns casos particulares. A escolha do antibiótico depende da prevalência local de três microrgarinismos as saber: Shigella, Salmonella e Campylobacter.
A gastreonterite suspeita ou confirmada por Shigella deve ser tratada com azitromicina (1ª linha - 12mg/Kg/dia no primeiro dia; 6mg/Kg/dia nos quatro dias seguintes) ou com um dos agentes de segunda linha: cefixima, cotrimoxazol ou ácido nadilíxico.
Na gastroenterite causada por Salmonella, a antibioterapia não reduz os sintomas, não previne complicações e associa-se, inclusive, a excreção prolongada da bactéria nas fezes. Recomenda-se em crianças de elevado risco (
A antibioterapia no tratamento da disenteria por Campylobacter, sobretudo quando iniciada precocemente no curso da doença (3 primeiros dias), é eficaz na prevenção da transmissão e na redução dos sintomas. O fármaco de 1ª linha é a azitromicina (10mg/Kg/dia 3 dias ou dose única de 30mg/Kg/dia).
A azitromicina (10mg/Kg/dia 3 dias) está também indicada na diarreia no viajante (E. coli enterotoxinogénica) e na suspeia de infecção por Vibrio cholerae.
O metronizadol (30mg/Kg/dia 10 dias) deve ser administrado nos casos de diarreia moderada e severa por Clostridium difficile.
Na gastroenterite causada por parasitas, não é necessário antiparasitários na criança saudável, excepto se doença grave. A giardíase pode ser tratada com metronidazol, nitazoxamida, albendazol ou tinidazol. A doença por Cryptotococcus deve ser tratada, sobretudo na criança imunossuprimida, com nitazoxamida. Para o tratamento da colite amebiana está indicado o metronidazol.
Na criança imunossuprimida, está indicado ganciclovir para a colite severa por citomegalovírus.
Algoritmo clínico/ terapêutico
A principal medida terapêutica é a hidratação. O tratamento de primeira linha, nos casos de desidratação ligeira a moderara, é a hidratação oral com soro de rehidratação oral de osmolaridade reduziada (50/60mmol/L).
Caso a criança tolere a hidratação oral e não apresente nenhum dos critérios de hospitalização (abaixo enumerados) pode ter alta para o domicílio.
O internamento está indicado na presença de pelo menos um de vários critérios: choque; desidratação grave; alterações neurológicas (letargia, convulsões); vómitos incoercíveis ou biliosos; falência de hidratação oral; suspeita de patologia cirúrgica; más condições socio-económicas.
No caso em que a hidratação oral não é tolerada, deve tentar-se hidratação por sonda naso-gástrica. Os esquemas rápidos (40-50mL/Kg em 3-6horas) ou standard (em 24h) são igualmente eficazes.
A hidratação endovenosa está indicada nos casos de choque; desidratação com alteração do nível de consciência ou acidose grave; agravamento ou ausência de melhoria apesar de hidratação oral ou por SNG; vómitos persistentes apesar de hidratação oral ou via SNG; distensão abdominal grave ou ileus.
O primeiro objectivo da fluidoterapia endovenosa é a reversão da desidratação. Para tal utiliza-se soro fisiológico (NaCl 0.9%).
Se a criança se apresenta em choque, deve receber de imediato um bólus de 20mL/Kg. Caso não se verifique melhoria da pressão arterial, deve administrar-se outro bólus de 20mL/Kg, 10 a 15 minutos após o primeiro.
Na criança que se apresenta com desidratação grave sem choque, pode realizar-se rehidratação rápida com soro fisiológico 20/mL/Kg durante 2 a 4 horas. Nos casos de desidratação moderada a ligeira pode fazer-se a correcção em 24h, adicionando-se aos fluidos de manutenção a percentagem de peso perdida (a título exemplar, se um doente perdeu 3% do peso habitual, calcula-se o soro para o peso actual e adiciona-se 3% a esse valor).
Após reversão da desidratação, pode administrar-se um soro de manutenção que contenha dextrose e, pelo menos, 0.45% de NaCl (para evitar hiponatrémia). Após a primeira micção e na ausência de hipercaliémia, deve associar-se 20mEq de potássio por cada litro de soro. O soro de manutenção deve ser calculado de acordo com o peso (1-10Kg – 100mL/Kg; 10-20Kg – 1000mL + 50mL/Kg para cada Kg > 10Kg; > 20Kg 1500mL + 20mL/Kg para cada Kg > 20Kg.
No caso de a criança se apresentar com desidratação hipernatrémica (Na+ > 145mmol/L), a rehidratação deve ser feita mais lentamente (48h); a correcção do sódio não deve ser superior a 0.5mmol/L/hora; e deve ser realizada monitorização frequente dos electrólitos.
A alimentação deve ser iniciada precocemente após a reversão da desidratação. Dietas ricas em pão e arroz não foram estudadas e não estão recomendadas. Bebidas contendo alto teor de açúcar deve ser evitadas.
O ondansetron oral ou endovenoso pode ser eficaz em crianças pequenas (>6 meses) com vómitos associados a gastroenterite. Não deve ser administrado nos casos de diarreia.
A administração de pró-bióticos contendo Lactobacillus rhamnosus e Saccharomyces boulardii diminui a duração da doença e a gravidade dos sintomas.
Crianças com mais de 6 meses que habitam países em vias de desenvolvimento pode beneficiar da administração de zinco.
Evolução
A gastroenterite aguda tem uma duração habitual de 7 dias e não mais do que 14.
No caso de internamento, a alta deve ser considerada se a criança se apresenta hidratada, não é necessário fluidos endovenosos, o aporte de líquido compensa as perdas e a avaliação médica é rapidamente acessível após alta.
A maioria das complicações associadas à gastroenterite aguda relaciona-se com o atraso na instalação de terapêutica adequada e consequente desidratação potencialmente fatal.
O rotavírus, o norovírus, o astrovírus e a Giardia estão amiúde implicados na doença grave ou prolongada.
Algumas características individuais relacionam-se com diarreia grave ou persistente: idade inferior a seis meses, imunodeficiência, doença oncológica, desnutrição. Determinadas características do quadro clínico, mormente febre, anorexia, vómitos e fezes com muco estão implicadas na doença grave ou prolongada.
Nos países em desenvolvimento, a desnutrição grave ou doenças concomitantes podem afectar significativamente o prognóstico da doença.
Nos países industrializados, a gravidade da gastroenterite aguda é reflectida pelo grau de desidratação. Vómitos e diarreia persistentes associam-se a pior prognóstico.
Recomendações
O aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses de vida protege as crianças pequenas através de imunidade passiva e da redução da ingestão de alimentos potencialmente infectados.
A prevenção da gastroenterite passa por quatro medidas essenciais: garantir à criança uma nutrição adequada; diminuição da contaminação dos alimentos (controlo da qualidade da água); medidas básicas de higiene (lavagem das mãos) e vacinação.
A vacina anti-rotavírus reduz a gravidade da doença e a mortalidade associada. Existem duas vacinas vivas orais disponívels, a Rotarix e a Rotateq.
Glossário
GEA - Gastrenterite aguda
E. coli – Escherichia coli
AINES – Anti-inflamatórios não esteróides
SNG – sonsa nasogástrica
Bibliografia
- Guarino, A, Ashkenazi S, Gendrel D, Vecchio AL, Shamir R, Szajewska, H. European Society Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition/European Society for Pediatric Infectious Diseases Evidence-Based Guidelines for Management of Acute Gastroenteritis in Children in Europe: Update 2014. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2014; 59:132-152.
- Zulfiqar, AB. Acute Gastroenteritis in Children. In Kliegman, RM, Stanton, BF, St Geme, JW, Schor, NF, Behrman, RE, editors. Nelson Textbook of Pediatrics. 20th ed. Philadelphia, United States: ELSEVIER; 2015. P 1854-1874.
- Camilleri, M, Murray, JA. Diarrhea and Constipation. In: Longo, DL, Fauci, AS, Kasper, DL, Hauser, SL, Hauser, SL, Jameson, JL, Loscalzo, J, editors. Harrison’s Principles of Internal Medicine. 18th ed. United States: Mc Graw Hill; 2011. P 308-319.
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