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Introdução

Definição

De acordo com a Direção Geral de Saúde (DGS), o mau trato físico é aquele que resulta de qualquer acção não acidental, isolada ou repetida, infligida por pais, cuidadores ou outros com responsabilidade face à criança ou jovem, a qual provoque (ou possa vir a provocar) dano físico.

Este tipo de maus tratos engloba um conjunto diversificado de situações traumáticas, desde a Síndroma da Criança Abanada até a intoxicações provocadas.

Epidemiologia

A real incidência do abuso físico contra crianças é desconhecida. Baseado em inquéritos de autorrevelação, a Organização Mundial da Saúde estima em 2013 que na Europa 22,9% das crianças tenham sido vítimas de violência física.

Em Portugal, os dados na área dos maus tratos encontram-se fragmentados. Em 2016 houve cerca de 39000 situações de perigo sinalizadas às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, das quais 5% representavam situações de abuso físico.

História Clínica

Anamnese

A anamnese deve incluir a caracterização da situação de abuso, e ainda a pesquisa de factores de risco e protectores. A maioria das lesões traumáticas na criança não decorre de situações de abuso, no entanto, devemos estar alerta e considerar o abuso como um dos possíveis mecanismos.

Dos antecedentes devemos considerar:

  • Aceitação e vigilância da gravidez, prematuridade e período perinatal
  • Presença de doença crónica, dificuldades escolares, deficiências físicas ou alterações do neurodesenvolvimento
  • Acompanhamento em Serviços de Saúde
  • Incidentes anteriores de lesões / traumatismos e hospitalizações

Sobre a situação social e familiar devemos ter em conta:

  • Condições de habitação e coabitantes
  • Dinâmica e rede familiar
  • Relação com parceiros da Rede Social
  • Violência intrafamiliar

Sobre o episódio de abuso devemos conhecer:

  • Tipo de agressão, contextualização, local e hora
  • Pessoas que assistiram ou tomaram conhecimento
  • Identificação do alegado agressor

Devemos ter atenção aos indicadores que podem levantar a suspeita de abuso:

  • História inadequada, explicação pouco consistente ou não compatível com as lesões, diferentes versões do acontecimento
  • Demora ou ausência de procura de cuidados médicos face à gravidade
  • Presença de lesões não concordantes com a idade e desenvolvimento
  • Alterações comportamentais recentes

Exame objectivo

É importante realizar um exame objectivo completo com intuito de verificar e documentar lesões de características não acidentais, assim como para avaliar o bem-estar geral da criança. Deve incluir:

1) Avaliação do estado nutricional, desenvolvimento e crescimento

2) Inspeção da pele, que poderá revelar a presença de lesões intencionais como:

  • Equimoses: situadas fora dos rebordos ósseo ou em local de punição, quando múltiplas e em vários estádios de evolução ou quando apresentam padrão de objecto
  • Queimaduras: em locais habitualmente cobertos, com bordos bem delimitados (padrão de luva ou de meia), queimadura por líquido quente na ausência de salpicos, com padrão de objecto ou de cigarro (redondas e com centro necrótico)
  • Mordeduras: recorrentes ou frequentes, ovóides e de tamanho semelhante ao do adulto
  • Fracturas: múltiplas, bilaterais e em diferentes estágios de consolidação, dos arcos costais posteriores, do crânio e dos ossos longos em crianças com menos de 2 anos (principalmente fracturas helicoidais por torção do membro ou fracturas metafisárias por estiramento ou “puxão”)

3) Restante exame objectivo, com avaliação sucinta da orofaringe e região genital

Diagnóstico Diferencial

Muitas vezes o diagnóstico diferencial que se torna mais difícil é o do mecanismo acidental, pelo que a suspeita de maus tratos físicos deve resultar de um conjunto de factores da história, exame objectivo e presença/ausência de outros factores de risco/proteção.

Situações de maior raridade podem ser consideradas na presença de equimoses múltiplas (alterações da hemóstase ou vasculites) lesões cutâneas que podem simular queimaduras em evolução (impetigo bolhoso e fotodermites, entre outras) ou fracturas múltiplas (osteogénese imperfeita, sífilis congénita ou raquitismo).

Exames Complementares

A realização de exames complementares terá como objectivo o diagnóstico diferencial com situações orgânicas, o esclarecimento da presença de fracturas presentes ou passadas, ou ainda a avaliação perante a suspeita de Sd da Criança Abanada.

Patologia Clínica

A avaliação analítica deverá ser realizada apenas quando se considerar no diagnóstico diferencial as alterações da coagulação, vasculopatias ou doenças do colagénio/mineralização óssea.

Imagiologia

Perante uma criança com fractura de características intencionais, poderá ser solicitado uma radiografia de esqueleto para pesquisa de fracturas anteriores noutras localizações. São situações que podem indicar a necessidade de avaliação radiológica: crianças menores de 2 anos com lesões sugestivas ou suspeitas de abuso físico e ainda lactentes com lesões intracerebrais inexplicadas ou morte súbita

Na suspeita da Sd da Criança Abanada é típica a presença dum hematoma subdural fronto-temporo-parietal na TAC-CE associado a presença de hemarragias retiniadas na fundoscopia (por tração da retina) e fracturas dos óssos longos na radiografia do esqueleto.

Outras avaliações vão depender da localização e extensão do dano físico e deveram ser abordadas como qualquer outro traumatismo: torácico, abdominal, pélvico, entre outros.

Tratamento

O tratamento das lesões de violência física deve ser semelhante ao das restantes lesões traumáticas.

Deverá ser feita uma avaliação e estabilização inicial do doente, assim como considerar o tratamento médico e cirúrgico de eventuais lesões com maior gravidade.

Após a estabilização clínica, será fundamental a orientação do ponto de vista da protecção da criança. Nesse sentido, a colaboração com os pareceiros Sociais é fulcral. A notificação às autoridades competentes para posterior investigação deverá ser sempre realizada.

Será necessário avaliar o grau de severidade da situação de mau trato, de acordo com a análise de um conjunto de factores, em particular:

  • As circunstâncias do incidente que gerou o mau trato
  • Os efeitos do mau trato na criança
  • O facto de se tratar de um acto isolado ou de uma situação repetida ou continuada
  • A existência de factores que aumentam a vulnerabilidade, tais como tratar-se de um menor de 5 anos ou existirem incapacidades físicas ou psíquicas
  • A presença/ausência de factores de protecção externos: familiares ou pessoa idónea que tenha capacidade para proteger a criança/jovem, acesso ao apoio de estruturas sociais da comunidade, entre outros.

Na presença de uma situação de perigo ou uma situação grave, poderá ser necessária a intervenção da Comissão de Proteção a Crianças e Jovens (CPCJ) territorialmente competente ou do Tribunal de Família e Menores. Em situações de menor gravidade, a articulação com parceiros da comunidade poderá ajudar a reduzir o risco presente.

Na Saúde, a criação dos Núcleos de Apoio à Criança e Jovem em Risco ao nível dos Arupamentos de Centros de Saúde e Hospitais, permite o melhor encaminhamento destas situações assim como a articulação com parceiros sociais.

Evolução

O impacto dos maus tratos físicos é heterogéneo e difícil de quantificar. É sabido que experiências adversas na infância contribuem fortemente para muitas doenças do adulto, e mais frequentemente as crianças vítimas de abuso apresentam doenças crónicas ou patologias psiquiátricas.

Para algumas crianças, os maus tratos físico podem resultas em deficiências permanentes, como no caso das sequelas neurológicas permanentes na Sd Criança Abanada ou alterações cutâneas nalgumas lesões não acidentais.

As crianças e adolescentes abusados têm maior risco de alterações comportamentais, depressão e baixo rendimento escolar.

Recomendações

Os profissionais de saúde situam-se numa posição estratégica para reconhecer o abuso e proteger a criança. Por outro lado, pelo seu contacto frequente com as famílias e pela sua posição na sociedade, podem actuar como potenciadores de medidas preventivas do abuso tais como:

  • educação para a parentalidade positiva
  • avaliação dos potenciais e dos défices a nível da família e da comunidade
  • ligação e participação nas estruturas comunitárias e de apoio social 

Bibliografia

DGS. Maus Tratos em Crianças e Jovens – Guia Prático de Abordagem, Diagnóstico e Intervenção. Direcção Geral da Saúde. 2011 [Internet] disponível em www.dgs.pt

Escobar C, Torre ML. Maus Tratos na Criança e no Jovem. In: Xarepe F, Costa IF, Morgado MRO. O risco e o perigo – na criança e na família. Lisboa: Pactor; 2017.

Magalhães T. Abuso de crianças e jovens: da suspeita ao diagnóstico. LIDEL Editora; 2010.

Christian CW; Committee on Child Abuse and Neglect, American Academy of Pediatrics. The Evaluation of Suspected Child Physical Abuse. Pediatrics. 2015 May;135(5):e1337-54.

Berkowitz CD. Physical Abuse of Children. N Engl J Med 2017; 376:1659-1666.

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