Alergia ao ovo
Introdução
As alergias alimentares correspondem a respostas imunológicas anormais que ocorrem após a exposição a uma proteína específica de um determinado alimento e que desencadeiam sintomas que variam numa ampla faixa de gravidade.
O ovo de galinha (Gallusdomesticus) é parte integrante da alimentação da maior parte do mundo, uma vez que é barato e acessível, mas também está presente na comida processada. Na maioria das vezes, a exposição ao ovo é feita pelo contacto ou ingestão deste alimento, mas é importante referir que as proteínas específicas do ovo também estão nas partículas aerossolizadas produzidas quando este é cozinhado ou manipulado.
A alergia ao ovo resulta de uma resposta imunológica mediada maioritariamente por imunoglobulinas E (alergia IgE mediada) e que ocorre após exposição às proteínas específicas do ovo.
O seu início é rápido (minutos a horas após a ingestão) e a gravidade dos sintomas pode variar de leves até anafilaxia. Em alguns casos podem também ocorrer mecanismos imunes envolvendo células ou outros mediadores do sistema imunológico (alergia não IgE mediada) ou por ambos os mecanismos.
As reações não mediadas por IgE são reações que ocorrem mais tardiamente após a exposição ao alergéneo (horas a dias), são mediadas por linfócitos T e a sua patogénese está menos esclarecida. A dermatite atópica e reações gastrointestinais como esofagite eosinofílica e a Síndrome de enterocolite induzida por proteínas alimentares (FPIES) são possíveis manifestações que se enquadram neste tipo de reações.
As principais proteínas envolvidas em reações alérgicas são Gal d 1 a 5, sendo que a maioria se encontra na clara (ovomucoide - Gal d 1; ovoalbumina- Gal d 2; ovotransferrina-Gal d 3 e lisozima-Gal d 4). Apesar da ovoalbumina ser a proteína mais abundante da clara, a ovomucóide é o alergénio dominante do ovo, ou seja, o que na maioria das vezes causa sensibilização.
O aquecimento desnatura as proteínas e altera a sua conformação, o que faz com que alguns alérgicos ao ovo possam tolerar ovo cozido. Apesar da ovoalbumina ser lábil ao calor, a ovomucóide não se altera com temperaturas elevadas. Sendo assim, crianças que tenham IgE específica positiva para ovoalbumina e negativa para a ovomucóide são suscetíveis de tolerar ovo cozinhado.
Para além do calor, a decomposição das proteínas pode ser potenciada pelas enzimas gástricas e pelo baixo pH do estômago. Sendo assim, foi demonstrado que a digestão gástrica reduz a alergenicidade da ovomucoide, o que justifica que alguns doentes tenham reação de contacto cutâneo ao ovo, mas não desenvolvam sintomas com a sua ingestão.
Epidemiologia
A alergia ao ovo da galinha é a segunda alergia alimentar mais comum (a primeira é ao leite de vaca) e tem uma prevalência confirmada, por provas de provocação oral, que varia entre 1.6-2.5%. A idade tem influência na prevalência de alergia ao ovo, sendo o início desta patologia mais comum entre os 9 e os 12 meses de idade.
História Clínica
Anamnese
Na história clínica é importante salientar os seguintes pontos:
● Antecedentes pessoais e familiares - alergias alimentares ou medicamentosas, asma, rinite alérgica, conjuntivite, dermatite atópica)
● Identificação do alimento suspeito e tipo de exposição (contacto, ingestão, inalação) - importante perceber se a reação alérgica ocorreu com ovo cozido, assado e/ou cru, bem como se aconteceu após contacto com a gema, com a clara ou com ambas. Os alimentos processados muitas vezes contêm ovo na sua constituição, por isso a leitura dos rótulos de composição alimentar é muito importante no caso de suspeita de alergia alimentar. A alergia ao ovo também se pode manifestar após contacto com as proteínas específicas do ovo presentes nas partículas aerossolizadas, sendo assim o aparecimento de sintomas com a inalação dessas partículas enquanto o ovo é cozinhado.
● Caracterização da reacção alérgica - momento em que ocorreu o primeiro contacto com o alimento suspeito e os contactos subsequentes; em que altura ocorreram reações adversas e qual foi a mais grave; tempo decorrido entre a exposição ao alimento e o início dos sintomas; caracterização dos sintomas. Em caso de reacção anafilática devem ser caracterizados os sintomas e o tratamento realizado. ● Circunstâncias em que ocorreu a reacção- local, situações de doença.
Exame objectivo
Na alergia ao ovo IgE os sintomas cutâneos são os mais comuns, embora também possam estar presentes manifestações respiratórias e/ou gastrointestinais. As reações anafiláticas graves são raras.
São exemplos de manifestações clínicas:
- Cutâneas- prurido, rubor, urticária/angioedema
- Oculares- prurido ocular, hiperemia conjuntival, edema periorbitário, lacrimejo
- Respiratórias- espirros, rinorreia, congestão nasal prurido oral, sabor metálico rouquidão, estridor, sensação de dificuldade respiratória, edema da laringe, dispneia, taquipneia, pieira, tosse, cianose
- Cardiovasculares- perturbação da condução, taquicardia, bradicardia (se reação grave), arritmia, hipotensão, paragem cardíaca
- Gastrointestinais- náuseas, vómitos, dor abdominal, diarreia
- Neurológicas- síncope, tonturas, convulsões
Diagnóstico Diferencial
Outros alimentos ou medicamentos desencadeadores causam habitualmente quadros clínicos semelhantes, sendo a sua identificação dependente de uma história clínica detalhada. Sendo assim, alergias a outros alimentos ou a fármacos podem ser diagnóstico diferencial da alergia ao ovo. O leite de vaca, os peixes e mariscos e os frutos de casca rija são exemplos de alimentos potencialmente alergénicos.
A infeção por Campylobacter ou por Salmonella, muitas vezes decorrente da ingestão de ovos estragados, causa vómitos e diarreia e pode ser confundida com alergia alimentar.
Habitualmente os sintomas de alergia alimentar ocorrem mais precocemente face aos quadros de gastroenterite e a febre é mais indicativa de infeção.
Exames Complementares
Testes cutâneos – Prick to Prick
Nos testes cutâneos (TC) Prick to Prick é avaliada a reação cutânea após 15 minutos da exposição do ovo (gema e clara cruas separadamente ou extratos) com a epiderme da criança. Estes testes só devem ser considerados se não houver evidência de reações alérgicas graves recentes. No caso do ovo, têm sido realizados vários estudos para tentar relacionar o tamanho das pápulas com a probabilidade de alergia. Sendo assim:
- Pápulas de 5 mm em crianças com idade inferior a 2 anos têm um valor preditivo positivo (VPP) superior a 95%;
- Pápulas de 7 mm em crianças com idade igual ou superior a 2 anos têm um valor preditivo positivo (VPP) superior a 95%;
A sua utilização tem sido importante na monitorização da alergia, uma vez que resultados superiores aos apresentados acima implicam uma probabilidade superior a 95% de reacção alérgica com a ingestão de ovo. Sendo assim, os TC têm um papel importante na orientação da decisão de evitar ou ponderar prova de provocação oral (PPO).
Pesquisa de IgE específicas
A pesquisa de IgE específicas é um teste seguro mas dispendioso e utiliza anticorpos anti-IgE marcados com enzimas para detectar a ligação da IgE sérica a um alérgeno conhecido. Existem IgE referentes ao ovo na sua totalidade e IgE específicas da clara e IgE da gema. Apesar de isoladamente não serem diagnósticos, o valor das IgE tem tido um papel importante na monitorização da alergia. Sendo assim, na literatura estão descritos alguns valores orientadores:
- Valores de IgE do ovo superiores a 7 kU/L em todas as idades e superiores a 2 kU/L em crianças com menos de 2 anos têm um VPP de pelo menos 95% para reatividade clínica, o que favorece o adiamento da PPO nessas circunstâncias.
- Crianças que possuam IgE específica da clara inferior a 2 KUA/L, têm mais de 80% de probabilidade de tolerar ovo cozido
- Crianças com valores de IgE específicos da clara superiores a 10 KUA/L, têm uma maior probabilidade de reação ao ovo cozido.
Com o avanço da biologia molecular, foi possível pesquisar IgE específicos para proteínas da composição do ovo, o que leva a um diagnóstico e orientação terapêutica mais individualizada. As proteínas pesquisadas são: Ovomucoide (Gal d 1), f233, Ovoalbumina (Gal d 2); f322, Conalbumina (Gal d 3); f323, Lisozima (Gal d 4); k208.A interpretação dos diferentes resultados da pesquisa de IgE específicas é a seguinte:
- Gal d 1 + à Alto risco de reação alérgica a ovo cru ou mal cozinhado - Alta probabilidade de persistência da reação alérgica;
- Gal d 2 e/ou Gal d 3 e/ou Gal d 4 + àTolerância provável ao ovo cozido, especialmente se Gal d 1 negativo ou com níveis baixos;
Prova de provocação oral
Nas PPO ocorre a ingestão, em ambiente hospitalar, de quantidades graduais de alimento alergénico. Enquanto os TC e a pesquisa de IgE apenas provam que existe sensibilização a um determinado alimento, as PPO são os testes de eleição para a confirmação da alergia alimentar. Só devem ser realizados caso a criança não tenha tido reações graves recentes.
É importante salientar que níveis indetectáveis de IgE do ovo (<0.35 KuA/L) não excluem a reactividade clínica a este alimento; segundo a literatura, em 10-33% dos casos em que a IgE é negativa, a PPO é positiva.
Tratamento
Nas crianças com suspeita de alergia ao ovo em estudo, ou com alergia documentada o tratamento de base é a evicção desse mesmo alimento. Tendo em conta o resultado do estudo das IgE específicas do ovo será possível orientar o tratamento para a evicção específica das diferentes formas de ovo, como já foi descrito anteriormente.
A correcta leitura dos rótulos alimentares é fundamental na rotina familiar de qualquer criança alérgica, uma vez que evita o contacto com o ovo em alimentos em que a presença deste alimento não é tão previsível.
As reações acidentais são muito frequentes, pelo que todas as crianças com alergia ao ovo deverão ter um kit de emergência que deverá acompanhar sempre a criança. Este kit deverá ser composto por: anti-histamínico, corticoide oral, caneta de adrenalina (em caso de anafilaxia) e antagonistas β de curta acção (se sintomas respiratórios em reacção prévia ou criança com asma).
Evolução
De acordo com a literatura, a maioria das crianças atinge tolerância ao ovo. Estima-se que 7 em cada 10 crianças com alergia ao ovo consiga vir a tolera-lo.
Aos 2 anos de vida, cerca de 20% dos alérgicos já tolera o ovo, aos 3 anos, entre 30-35% e aos 5 anos cerca de metade das crianças alérgicas já não manifesta a alergia. Mais tarde, a evolução é mais lenta e alcança os 75% de crianças curadas pelos 9 anos de vida.
A PPO deve ser ponderada de acordo com valor de IgE específica ou alterações nos testes cutâneos. Até à sua realização deverá ser mantida a evicção do ovo.
Os seguintes fatores de prognóstico podem influenciar o desenvolvimento de tolerância:
- Valor mais baixo de IgE específica do ovo
- Valores mais baixos de IgE específica da ovomucoide e ovoalbumina
- Taxa de declínio das IgE específicas do ovo ao longo do tempo
- Idade de diagnóstico mais precoce
- Sintomas ligeiros (exemplo urticária isolada) na apresentação clínica
- Pápulas mais pequenas nos testes cutâneos
- Tolerância ao ovo cozinhado
Recomendações
- Confirmar a ausência de ovo nas refeições e recusar refeições cuja composição seja desconhecida; leitura atenta dos rótulos;
- Evitar a contaminação cruzada (ter atenção na partilha de superfícies e utensílios de cozinha)
- Identificação da criança com alergia (entregar cartão de alergia, carta explicativa na escola e outros locais que a criança frequente regularmente);
- Se anafilaxia ou reacção alérgica grave com pequena quantidade de alergénio, deve ser prescrita a caneta de adrenalina, com treino na sua administração e entregue folheto do mesmo. Devem ser também prescritos anti-histamínico e corticoide oral.
Tendo em conta a norma de orientação clínica 006/2012 da Direção Geral de Saúde, a vacina contra sarampo, parotidite e rubéola (VASPR), pode conter vestígios de ovoalbumina. De acordo com a literatura, também a vacina da gripe e a vacina da febre amarela podem coapresentar vestígios desta proteína.
- Vacina da VASPR: os TC não são preditivos de reação à vacina, pelo que não estão recomendados. A administração em ambiente hospitalar fica reservada para os casos de história pessoal documentada de anafilaxia ao ovo; reação prévia à administração da VASPR; asma não controlada numa criança com história documentada de alergia ao ovo, independentemente da gravidade da reação prévia ao mesmo. Todos os restantes casos, podem realizar a VASPR nos Cuidados de Saúde Primários.
- Vacina da gripe sazonal e a vacina contra a gripe: Nos casos de anafilaxia ao ovo, o risco/benefício da vacina deverá ser ponderado. Apenas as crianças com alergia comprovada à ovoalbumina e que cumprem dieta de evicção tem indicação para serem avaliadas na consulta de Alergologia Pediátrica. No caso destes doentes, devem ser realizados TC antes da sua administração da vacina:
- Se TC positivos → a criança não deve realizar vacina
- Se TC negativos → a criança pode ser vacinada em ambiente hospitalar. Se a reação alérgica tiver sido moderada a severa, deverá repartir a vacina em 2 tomas (1/10 e 9/10)
- Vacina da febre amarela: as crianças com história de anafilaxia ao ovo ou se alergia suspeita ou confirmada a ovoalbumina, devem realizar TC prévios à realização da vacina. Se o resultado dos TC for positivo, a criança deve fazer em ambiente hospitalar o protocolo de indução de tolerância antes da administração da vacina ; caso o resultado seja negativo, a criança poderá ser vacinada.
Saber Mais
Alergia alimentar, ovo
Bibliografia
Wang J. Egg Allergy: Clinical features and diagnosis and management. Sep 2023. UptoDate
Caffarelli C, Giannetti A, Rossi A, Ricci G. Egg Allergy in Children and Weaning Diet. Nutrients. 2022 Apr 7;14(8):1540. doi: 10.3390/nu14081540. PMID: 35458102; PMCID: PMC9025129.
Chokshi NY, Sicherer SH. Molecular diagnosis of egg allergy: an update. Expert Rev Mol Diagn. 2015;15(7):895-906. doi: 10.1586/14737159.2015.1041927. Epub 2015 May 15. PMID: 25975845.
Halken S, Muraro A, de Silva D, et all; European Academy of Allergy and Clinical Immunology Food Allergy and Anaphylaxis Guidelines Group. EAACI guideline: Preventing the development of food allergy in infants and young children (2020 update). PediatrAllergyImmunol. 2021 Jul;32(5):843-858. doi: 10.1111/pai.13496. Epub 2021 Mar 29. PMID: 33710678.
Programa Nacional de Vacinação 2012 – VASPR e a alergia ao ovo. Norma de orientação clínica número 006/2012. Direção Geral de Saúde. 2012
Deseja sugerir alguma alteração para este tema?
Existe algum tema que queira ver na Pedipedia - Enciclopédia Online?