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Introdução

Definição, epidemiologia e classificação

O torcicolo é um sinal clínico caracterizado por uma postura assimétrica da cabeça e pescoço, com a cabeça inclinada para o lado afectado e o pescoço rodado (desvio do queixo) para o ombro contralateral à lesão1. Esta postura pode ser apresentação de inúmeras patologias, entre elas o torcicolo muscular congénito (TMC). O TMC verifica-se logo após o nascimento ou nos primeiros meses de vida e é devido à fibrose e consequente encurtamento do músculo esternocleidomastoideu (ECM).

A sua incidência pode atingir os 16%1, sendo uma entidade muitas vezes não diagnosticada. Raramente é bilateral, apresenta igual prevalência quanto à lateralidade da lesão e sexo, sendo mais frequente se existir história familiar de TMC.

No TMC para além da posição característica da cabeça, pode palpar-se uma pequena massa ou nódulo no EMC, classificando-se  em três grupos, de acordo com a avaliação clínica:

  1. “massa” palpável no ECM e limitação das amplitudes articulares passivas;
  2. espessamento do músculo e limitação das amplitudes articulares ativas;
  3. sem alterações musculares palpáveis mas com a postura típica de torcicolo.

Este último grupo é muitas vezes  denominado de “torcicolo postural”, não existindo consenso se é um verdadeiro torcicolo ou apenas uma postura preferencial assumida pelo lactente.

História Clínica

Anamnese 

Começar por inquirir sobre a história obstétrica e o parto e despistar fatores de risco como: restrição do crescimento intra-uterino, oligoâmnios, gravidez gemelar, parto distócico ou de apresentação pélvica1. Deve saber-se o tempo de evolução do torcicolo e se houve alguma alteração nos sintomas manifestados ou relação com possível traumatismo. Questionar também o posicionamento do berço relativamente à cama dos pais, bem como o tempo que passa em decúbito ventral.  

Exame objectivo

O exame objectivo deve começar pela observação do recém-nascido (RN) ou lactente em decúbito dorsal e posteriormente em posição de sentado (se necessário amparado pelos ombros) de modo a perceber-se a sua postura mais habitual. Posteriormente realizar a palpação do músculo ECM afectado, na pesquisa de espessamento ou massa que habitualmente é fusiforme.

Seguidamente devem ser avaliadas as amplitudes articulares ativas do pescoço: fazer seguir o rosto do adulto ou de um objeto estimulando a rotação do pescoço para os dois lados e apreciar a simetria.

Se o clínico for experiente pode ainda avaliar as amplitudes articulares passivas de rotação e inclinação do pescoço - nas crianças até aos 3 anos são de 100-110º graus de rotação (o queixo toca no ombro facilmente) e de 65 -75º de inclinação lateral (o topo da orelha toca no ombro ipsilateral).

Deve ainda apreciar-se a configuração da cabeça e a simetria facial para despistar a existência de plagiocefalia associada1, 2, comorbilidade frequente nesta patologia. Finalmente, observar a face posterior de pescoço de modo a avaliar a simetria dos músculos trapézios.

É importante tentar classificar o torcicolo nos grupos acima descritos, pois tal classificação tem implicação no tratamento e prognóstico.

Para exclusão de outras patologias associadas é ainda importante apreciar4: função visual: alinhamento ocular, presença do reflexo vermelho, reação pupilar à luz, avaliar se fixa e segue os objetos; rastreio da displasia da anca: manobra de Barlow e Ortolani, assimetria das pregas cutâneas glúteas e inguinais, encurtamento do membro inferior, sinal de Galeazzi; exame neurológico: pares cranianos, tónus e força muscular, presença de reflexos primitivos; exame do pescoço: exclusão de adenopatias, alterações da coloração da pele, dor à mobilização. Caso exista alteração e suspeita de patologia associada é importante a referenciação atempada para a consulta de subespecialidade.   

Diagnóstico Diferencial

Apesar do TMC ser a causa mais comum de torcicolo, 8 a 10%  terão torcicolo de outra etiologia 2-4, a saber:

  • Patologia osteo-articular: malformações congénitas das vértebras cervicais;  traumatismo major  com luxação atlanto-axoideia ou fratura de vertebra cervical. São casos raros e o torcicolo é normalmente doloroso e irredutível1, 5. Excluir por radiografia cervical ou RMN.
  • Patologia  inflamatória: infeções respiratórias altas, linfadenite cervical, abcesso faríngeo, amigdalite, otite e mastoidite podem levar a uma postura de torcicolo por inflamação local dos músculos paravertebrais e das raízes nervosas dos músculos ECM e trapézio. Se após a resolução  destas situações o torcicolo persistir, excluir a presença de subluxação atlanto-axoideia, situação rara denominada síndrome de Grisel, pode ter graves consequências neurológicas.
  • Patologia infecciosa:  a osteomielite e a espondilodiscite das articulações cervicais, podem também originar rigidez cervical que é dolorosa e acompanhada geralmente por febre e alteração do estado geral. Pode ser necessário realizar RMN para confirmação do diagnóstico.
  • Patologia oftalmológica: habitualmente por fraqueza dos músculos da oculomotricidade (recto lateral ou oblíquo superior), o torcicolo resulta de um mecanismo compensatório para melhorar a visão1. Ao exame físico não existe contractura muscular e as amplitudes articulares estão preservadas. Perante esta suspeita é importante a observação por oftalmologia.
  • Patologia oncológica: o torcicolo pode ser o primeiro sinal de apresentação de tumores da fossa posterior, nomeadamente da linha média ou da medula cervical. Caso existam sinais de hipertensão intracraniana e/ou sinais neurológicos como a ataxia, esta etiologia deve ser despistada por exames de imagem.
  • Torcicolo benigno paroxístico: variante da enxaqueca na infância, é uma situação autolimitada que consiste em episódios recorrentes de torcicolo com lateralidade variável. É mais comum no sexo feminino, entre os 2 meses e os 2 anos de vida, e tem bom prognóstico.

Outras causas de torcicolo:

  • Artrite idiopática juvenil: rara a apresentação localizada apenas na coluna cervical devendo pesquisar-se outras articulações e enviar para consulta de reumatologia;
  • Síndrome de Sandinfer: associada a refluxo gastro-esofágico (RGE) e hérnia do hiato, o torcicolo surge por episódios como posição antálgica ao refluxo. Se melhorado o RGE, o torcicolo resolve espontaneamente.

Exames Complementares

O TMC é uma entidade cujo diagnóstico é clínico mas pode ser pedida ecografia nos casos mais graves de TMC para documentar a lesão.

As alterações encontradas na ecografia são habitualmente de “tumor”, espessamento ou ecogenicidade heterogénea do ECM; por vezes hematoma no interior do músculo2,3. Se a ecografia não revelar alterações não significa que não exista TMC, sendo este classificado no grupo de torcicolo postural.

Na suspeita de lesão ou malformação óssea, pode ser pedida radiografia da coluna cervical. Para exclusão de inflamação do foro otorrinolaringológico a ecografia dos tecidos moles da região cervical pode também ser útil.

Nos casos mais raros em que há suspeita de patologia oncológica é necessário a realização de TC ou RMN.  Deve ser solicitada ecografia para despiste de displasia de desenvolvimento das ancas por estar descrito a sua associação com o  TMC

Tratamento

A grande maioria dos casos de TMC é tratado com sucesso de forma conservadora através de programas de fisioterapia. Assim sendo, a referenciação para uma consulta de Medicina Física e de Reabilitação (MFR) não deve ser protelada.

A maioria dos estudos conclui que nos casos mais leves, o tratamento pode ser realizado no domicílio pelos pais e que deve ser realizado por fisioterapeuta quando há limitação das amplitudes articulares3. Neste último caso está indicado, para além dos posicionamentos e exercícios realizados pelos pais, a realização de estiramentos passivos dos músculos afectados e fortalecimento dos músculos menos usados1. É fundamental na abordagem terapêutica o ensino aos pais dos exercícios e posturas adequadas visando a sua adoção nas rotinas diárias, determinante para um bom resultado terapêutico.

As medidas posturais que devem ser adotadas para um correto posicionamento são:

  • estimular a criança a olhar para o lado afetado, alimentando-a e brincando com ela desse lado;
  • colocar o RN ou lactente no berço de modo que a cama dos pais fique posicionada do lado menos usado;
  • pegar ao colo lateralmente de modo que o lado “não afetado” fique orientado  para cima;
  • amamentar ou dar biberão de maneira que o pescoço fique rodado para o lado menos utilizado;
  • tummy time – todos os dias e várias vezes ao dia, colocar o RN ou lactente em decúbito ventral, se acordado e sob supervisão, de modo a fortalecer os músculos posteriores do pescoço.

Nos casos que ficam apenas em tratamento realizado pelos pais, deve ser feito um seguimento apertado de modo a avaliar a evolução. Caso não se verifique uma boa evolução ao fim de um mês deve-se incluir num programa de fisioterapia.

Após a alta, os pais devem ainda manter por algumas semanas as estratégias adotadas, para não existirem recorrências dos sintomas, situação que é frequente.

Nos casos em que o torcicolo persiste mesmo após 6 meses de tratamento pode-se tentar a infiltração do ECM com toxina botulínica, realizada por especialista com experiência, seguido de programa intensivo de fisioterapia.

O tratamento cirúrgico está indicado nos casos refratários após pelo menos um ano de tratamento conservador e nos casos que mantenham limitação das amplitudes articulares. A cirurgia consiste habitualmente na libertação das bandas fibrosas do músculo ou na incisão transversa do ECM. Após a cirurgia deve-se também realizar um programa de fisioterapia com estiramento muscular.

A utilização de ortótese do pescoço ou kinesio-tape não tem evidência comprovada na literatura.

Evolução

O diagnóstico precoce é essencial de modo a iniciar-se o tratamento de reabilitação o mais cedo possível.

Os casos que inicialmente apresentam massa palpável e limitação das amplitudes articulares são aqueles que apresentam pior prognóstico, com maior tempo de tratamento e eventual necessidade de cirurgia. No entanto, é consistente na literatura que quanto mais precoce for o tratamento melhor é a evolução e a probabilidade de resolução completa2. Isto explica-se porque nos dois primeiros meses de vida os músculos têm mais elasticidade e maior capacidade de adaptação.

Os casos de torcicolo postural, embora sejam diagnosticados mais tardiamente, acabam por ter melhor prognóstico, sendo raro a necessidade de cirurgia.

Recomendações

O TMC é comum na consulta de MFR pediátrica sendo com frequência subvalorizada pelo médico assistente. No exame do RN e  lactente, valorizar a postura preferencial adoptada pela criança e se suspeita de torcicolo, não se deve aguardar pela sua evolução mas enviar de imediato à consulta de reabilitação.

Em todos os RN é recomendável aconselhar aos pais a alternância da orientação do bebé no berço relativamente à cama dos pais, a realização de períodos de decúbito ventral supervisionados a partir do primeiro mês de vida, assim como a alternância de lateralidade de posturas nas rotinas diárias.

Bibliografia

  1. Kuo A.A., Tritasavit S., Graham J.M. Congenital Muscular Torticollis and Positional Plagiocephaly. Pediatrics in Review 2014 Vol.35, No 2 79-87
  2. Comparison of Clinical Findings of Congenital Muscular Torticollis between patients with and without sternocleidomastoid lesions as determined by ultrasonography. J Pediatr Orthop 2017.
  3. Carenzio G., Carlisi E., Morani I., Tinelli C., Barak M., Bejor M., et al. Early rehabilitation treatment in newborns with congenital muscular torticollis. Eur J Phys Rehabil Med 2015; 51:539-45
  4. Bastos S., Almeida J., Veiros I., Bártolo M., Ribeira T., Nunes R. 2014 Revista da SPMFR. Vol 25:1 , 21-24
  5. Regala M., Martins J., Dias A.I., Moreira A, Neves M.C. Torcicolo adquirido na criança. Acta Pediatr Port 2013; 44(2): 74-81

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