Exame cardio-vascular do recém-nascido
Introdução
As cardiopatias são a malformação congénita mais frequente.
Estima-se uma incidência de 6-8 por mil nados vivos e constitui cerca de 20 % das anomalias presentes ao nascimento. A sua prevalência está subestimada, porque não inclui a embriologia, nem os fetos com malformações que não chegam ao final da gestação.
Há também um número elevado de crianças com anomalias subclínicas que não chegam a ser diagnosticadas ou são-no apenas na vida adulta.
As cardiopatias congénitas podem apresentar um largo espectro clínico, desde assintomáticas, com pouca gravidade e baixo risco de morbilidade e mortalidade, até cardiopatias de maior gravidade, cujo tratamento médico ou cirúrgico, permitem uma maior sobrevida, mas nem sempre asseguram uma esperança e qualidade de vida normais.
A etiologia das cardiopatias congénitas é, habitualmente, multifactorial. Apenas em 15 % dos casos se encontra uma etiologia primária identificável: anomalias genéticas ou cromossómicas; factores ambientais (doenças e infecções maternas, utilização de medicamentos ou drogas, exposição a radiações).
História Clínica
Nos antecedentes pessoais, é importante esclarecer a história da gravidez, excluindo exposição a agentes teratogénicos.
A maioria dos RN com cardiopatia congénita é assintomática ao nascimento. À medida que ocorre a transição da circulação fetal para a circulação neonatal, começam a surgir os sinais e sintomas específicos da fisiologia dos defeitos cardiovasculares.
Com o nascimento e o início da respiração do recém-nascido (RN), ocorre uma queda abrupta das resistências vasculares pulmonares, que condiciona vasodilatação pulmonar e aumento do fluxo sanguíneo pulmonar. A falta da circulação placentária e a diminuição das prostaglandinas circulantes, condicionam um aumento das resistências vasculares sistémicas, que levam a um aumento das pressões no coração esquerdo. Estas alterações provocam o encerramento da membrana do forâmen ovale (membrana do septo interauricular) e do canal arterial (artéria que, na vida fetal, une a artéria aorta à artéria pulmonar).
Deve também investigar-se a forma como decorre a amamentação, a frequência e duração das mamadas, o aparecimento de cansaço de agravamento progressivo, hipersudorese ou dispneia, se há alterações da coloração da pele e mucosas com e sem o esforço.
Pode iniciar-se o exame cardiovascular do recém-nascido ao colo da mãe, para que se sinta mais confortável e protegido.
Na inspecção deve avaliar-se a aparência, o estado nutricional, a coloração da pele e mucosas; excluir-se a existência de malformações que nos possam indicar uma anomalia cromossómica ou síndrome malformativo; inspeccionar-se o tórax pesquisando assimetrias; avaliar o padrão respiratório e a localização do impulso apical (normalmente localizado no quarto espaço intercostal, na linha médio-clavicular).
Na suspeita de cianose central, deve ser feita a monitorização da saturação transcutânea de oxigénio e gasimetria arterial.
A monitorização da saturação transcutânea de oxigénio para rastreio de cardiopatias congénitas é pratica corrente na maioria das maternidades do país. Consiste na avaliação da saturação no membro superior direito (saturação pré-ductal) e num dos membros inferiores (saturação pós-ductal) depois das primeiras 24 horas de vida. Valores superiores a 94 % em ambos os membros são considerados normais. Se houver um diferencial superior a 3 % em três medidas consecutivas ou se a saturação for inferior a 94 %, o RN deve ser avaliado por um neonatologista e, eventualmente, um cardiologista pediátrico.
A palpação do RN, inclui a localização do impulso apical e exclusão de frémitos. Os pulsos periféricos devem ser avaliados em relação à sua amplitude, regularidade, frequência e sincronismo. A sua palpação deve ser simultânea entre as extremidades superiores e inferiores.
Deve fazer-se a medição da tensão arterial nos quatro membros.
A auscultação cardíaca deve ter em linha de conta a regularidade, frequência, intensidade e qualidade dos tons cardíacos. Deve auscultar-se também o dorso e o abdómen para excluir a existência de fístulas arteriovenosas.
Cada ciclo cardíaco inclui o primeiro e o segundo ruídos. O primeiro ruído cardíaco corresponde ao encerramento das válvulas aurículo-ventriculares (mitral e tricúspide) e é geralmente único, porque o encerramento destas válvulas é simultâneo. O segundo ruído cardíaco corresponde ao encerramento das válvulas semilunares: aorta primeiro, seguida da pulmonar. Este ruído cardíaco é, normalmente, desdobrado. O terceiro ruído cardíaco é também normal e corresponde ao enchimento ventricular rápido; é causado pela vibração das estruturas miocárdicas ventriculares (início da diástole).
Na fase final da diástole, a contracção auricular aumenta o enchimento ventricular. Se houver resistência a esse enchimento (algumas miocardiopatias), o miocárdio irá produzir um quarto ruído. Este é sempre patológico e conhecido como ritmo de galope.
A elevada frequência cardíaca do RN pode dificultar a correcta percepção dos diferentes ruídos cardíacos. Deve tentar ouvir-se o 1º e 2º ruídos e eventual existência de sopros (perceber a sua intensidade, qualidade e transmissão, localização no tórax e ciclo cardíaco). (Fig.1)
Figura 1. Localização dos sopros audíveis mais frequentes, adaptado de Park M, 2014 (4)
Os sopros cardíacos podem ser inocentes ou patológicos (Tabela 1), sistólicos, diastólicos ou contínuos, de maior ou menor intensidade e duração.
Os sopros inocentes são sons produzidos pela passagem do fluxo sanguíneo nas estruturas cardiovasculares normais, na ausência de anomalias anatómicas. São audíveis em cerca de 80 % das crianças saudáveis, aos 3 / 4 anos de idade. A sua intensidade varia com a posição do doente e são exacerbados nos períodos de aumento do débito cardíaco (febre, anemia, ansiedade). São habitualmente sopros sistólicos de ejecção, de intensidade inferior a quatro. Os sopros inocentes não estão associados a anomalias anatómicas e não traduzem doença.
Sopros Inocentes |
Sopros Patológicos |
Sopros sistólicos de ejecção Grau ≤ III |
Sopros sistólicos de ejecção de qualquer grau, associados a sons anormais Sopros sistólicos de regurgitação Sopros diastólicos Sopros contínuos (excepto zumbido venoso) |
Os sopros patológicos estão associados a malformações cardiovasculares, que provocam turbulência ou obstáculo ao fluxo sanguíneo. A sua intensidade varia de grau I a grau VI.
Sopro de grau I a III |
Progressivamente mais audível, sem frémito |
Sopro grau IV a VI | Bem audível, associado a frémito |
Diagnóstico Diferencial
O RN pode apresentar diferentes sinais e sintomas correspondentes a um largo espectro de doenças cardiovasculares: quadro clinico com predomínio de cianose ou de insuficiência cardíaca; arritmias; ou, estando assintomático, detetar-se um sopro cardíaco durante o exame objetivo.
Cianose
A cianose corresponde à coloração arroxeada da pele e mucosas.
É importante distinguir se se trata de cianose central, periférica ou diferencial.
A cianose periférica ou das extremidades é causada por vasoconstrição periférica, por diminuição da velocidade da circulação com aumento da extração de oxigénio pelos tecidos e aumento local da hemoglobina reduzida, geralmente não traduz significado clínico.
A cianose diferencial é frequente no RN prematuro, por estase circulatória (coloração diferente entre o lado direito e esquerdo do corpo, em decúbito lateral).
A cianose central traduz uma dessaturação ≥ 5 gr / dl de hemoglobina. Detectável apenas quando a saturação é inferior a 85 % numa criança com hemoglobina normal. É mais difícil de detetar numa criança com anemia (concentração de hemoglobina reduzida menor do que 5 gr/dl).
O melhor local para procurar cianose central é na língua, mucosa oral e leitos ungueais.
A cianose central pode ser contínua ou intermitente e ter diferentes etiologias: respiratória (a mais frequente), séptica, neurológica, gastro-esofágica.
Pensar em cianose de causa cardíaca quando associada a sopros cardíacos, clinica de insuficiência cardíaca ou alteração na palpação dos pulsos periféricos e quando as outras etiologias foram excluídas.
Para diagnóstico diferencial entre patologia respiratória e cardíaca, deve fazer-se prova de hiperóxia (administração de 100% de oxigénio durante 10 minutos). A subida das saturações ≥ 20% significa patologia respiratória; enquanto na patologia cardíaca não há aumento significativo das saturações de oxigénio. Deve fazer-se sempre gasimetria arterial. O aumento da pressão arterial de oxigénio ≥ 250 torr nas extremidades superiores e inferiores, significa que não há patologia cardíaca cianótica grave. Se a pressão arterial de oxigénio se mantém
Na suspeita de cianose de causa cardíaca, avaliamos a auscultação à procura de sopros e observamos a vascularização pulmonar na radiografia do tórax.
Se a vascularização pulmonar estiver normal ou aumentada, significa que não há obstáculo à passagem do fluxo para a circulação sanguínea pulmonar ou este é pouco significativo (obstáculo do coração direito).
Se a vascularização pulmonar estiver diminuída, significa que há um obstáculo ao fluxo sanguíneo pulmonar, ou seja, há um obstáculo direito grave.
Insuficiência Cardíaca
Outra manifestação clinica de patologia cardiovascular é a insuficiência cardíaca. Esta produz sinais e sintomas de baixo débito sistémico, porque o ventrículo esquerdo não consegue bombear sangue para a circulação sistémica de forma eficaz. Clinicamente traduz-se por taquicardia, hipersudorese, palidez e pulsos fracos.
Isto leva à acumulação do sangue a montante: veias pulmonares, artéria pulmonar, ventrículo direito. Surge congestão venosa pulmonar, que se traduz clinicamente por alterações respiratórias (taquipneia, dispneia, fervores, infecções respiratórias de repetição e, em situações graves, edema pulmonar agudo). A acumulação de sangue na circulação pulmonar condiciona progressivamente um aumento do fluxo sanguíneo no coração direito que por sua vez, leva a ingurgitamento venoso jugular, hepatomegalia e edemas periféricos.
As patologias que condicionam sinais e sintomas com predomínio de insuficiência cardíaca no RN variam com a altura do seu aparecimento.
As malformações cardiovasculares que causam precocemente clinica de insuficiência cardíaca são os obstáculos esquerdos. São tanto mais graves, quanto mais precocemente surgem as manifestações clínicas (síndrome do coração esquerdo hipoplásico, interrupção do arco aórtico, coartação da aorta, estenose valvular aórtica e mitral). As miocardiopatias hipertrófica ou dilatada, as miocardites e as arritmias também podem dar sintomatologia precoce, por disfunção ventricular.
Depois da terceira semana de vida, a clinica de insuficiência cardíaca surge porque as resistências vasculares pulmonares diminuem. A diferença de pressão sanguínea entre o coração direito e esquerdo aumenta, o que condiciona um aumento progressivo na passagem de fluxo sanguíneo através de qualquer comunicação (shunt) existente entre estas duas circulações: defeito septo interventricular, defeito do septo aurículo-ventricular, persistência do canal arterial (no prematuro). O volume de sangue que passa do lado esquerdo para o direito do coração aumenta o retorno venoso pulmonar e o ventrículo esquerdo torna-se incapaz de incapaz de aumentar o débito cardíaco de forma a compensar este aumento de retorno venoso. As cavidades cardíacas esquerdas começam a dilatar e surgem sinais de insuficiência cardíaca.
O RN prematuro pode apresentar clinica de insuficiência cardíaca devido à patência do canal arterial. Esta depende da magnitude do canal arterial, da capacidade do recém-nascido desenvolver mecanismos compensatórios à sobrecarga de volume e das patologias associadas à prematuridade.
Sopros Cardíacos
Na avaliação cardiovascular do RN é frequente auscultarem-se sopros, nem sempre com significado patológico.
A transição da circulação pré para pós-natal leva à patência temporária de shunts sistémico – pulmonares (canal arterial), ou a estenoses relativas das artérias pulmonares, que podem provocar alterações na auscultação cardiovascular normal do RN nos primeiros dias de vida (particularmente no recém-nascido prematuro).
Os sopros de patologias valvulares (estenose ou insuficiência) surgem nos primeiros dias de vida, com intensidade dependente do grau de obstáculo ou gravidade da regurgitação valvular e podem ir agravando ou não de intensidade.
Os sopros provocados por shunts esquerdo-direitos, surgem mais tardiamente, entre a segunda e a quarta semanas de vida, quando as resistências vasculares pulmonares diminuem e o shunt aumenta.
Exames Complementares
Radiografia do tórax: faz diagnóstico diferencial entre patologia cardíaca e respiratória; avalia a silhueta cardíaca e dos grandes vasos; a vascularização pulmonar; a existência de timo; o situs torácico e abdominal. Permite também pesquisar anomalias esqueléticas.
O Electrocardiograma: avalia o ritmo e frequência cardíaca, identifica a etiologia das diferentes arritmias; avalia a existência de dilatação auricular ou hipertrofia ventricular; alterações isquémicas ou da repolarização.
O Ecocardiograma transtorácico: exame não invasivo, de fácil acesso, que permite avaliar e caracterizar anatómica e funcionalmente as malformações cardiovasculares, fazer o seguimento da sua evolução e estabelecer o seu prognóstico.
O Holter: corresponde ao registo electrocardiográfico de 24 ou 48 horas. Permite uma avaliação electrocardiográfica contínua, podendo analisar arritmias transitórias ou intermitentes.
Ressonância Magnética e Tomografia Computorizada cardiovascular: são técnicas imagiológicas que permitem avaliar alterações anatómicas ou estruturais do coração e grandes vasos, bem como a sua função e a relação com estruturas anatómicas adjacentes.
Cateterismo Cardíaco ou Angiografia Cardiovascular: é um método invasivo de diagnóstico e terapêutica de diversas patologias cardiovasculares. Na criança é necessário sedação e analgesia e por vezes ventilação invasiva. Actualmente o cateterismo diagnóstico é reservado para situações específicas, sendo cada vez mais utilizado como tratamento de cardiopatias congénitas.
Evolução
Quando referenciar um recém-nascido à consulta de Cardiologia Pediátrica:
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Bibliografia
- Cloherty J, Eichenwald E, Stark A. Manual of neonatal care. 7th ed.Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2012
- Allen H, Shaddy R, Penny D, Feltes T, Cetta F. Moss and Adams´ Heart disease in infants, children and adolescentes. 9th ed. Philadelphia: Wolters Kluwer; 2016
- Park M. Pediatric cardiology for practitionares. 6th ed. Texas: Mosby; 2014
- Sainz J, Zurita M, Guillen I, Borrero C, Garcia-Mejido J, Almeida C, Turmo E, Garrido R. Cribado prenatal de cardiopatías congénitas en poblacion de bajo riesgo de defectos congénitos. Una realidade en la actualidad. An Pediatr (Barc). 2015;82(1):27-34
- Subirana M, Oliver J, Sáez J, Zunzunegui J. Cardiología pediátrica y cardiopatías congénitas: del feto al adulto. Rev Esp Cardiol. 2012; 65(Supl 1): 50-58
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