Síndrome de Angelman
Introdução
A Síndrome de Angelman (SA) é uma patologia do neurodesenvolvimento de causa genética. É causada pela ausência da expressão do gene UBE3A, localizado no cromossoma 15, na região 15q11-q13.
Normalmente, são herdadas duas cópias do gene UBE3A, uma materna e outra paterna. No cérebro, ocorre imprinting paterno e expressão materna, enquanto que noutros tecidos acontece o inverso. Na SA, há ausência de expressão materna, que pode ser causada por: deleção 15q11-13 (70%), dissomia uniparental paterna (2%), defeito de imprinting (3%) ou mutação pontual (10%).
O gene UBE3A codifica uma proteína responsável pela proliferação neuronal e criação de sinapses no hipocampo, cerebelo e áreas corticais dedicadas a aprendizagem. A sua ausência faz com que a SA se associe a défice cognitivo, atraso de linguagem, dificuldades no controlo e planeamento motor, distúrbios do sono, hiperatividade e défice de atenção, convulsões e comportamentos particulares. Os doentes com a deleção 15q11-13 (classe I) têm um quadro clínico mais evidente.
Epidemiologia
Estima-se que a sua incidência varie entre 1:15.000 e 1:20.000 nascimentos. No entanto, cerca de 10% dos indivíduos com fenótipo compatível com SA, não têm confirmação genética. O diagnóstico diferencial dos casos “Angelman-like” inclui síndromes como Phelan-McDermid, Christianson, Mowat-Wilson, Kleefstra e Rett, síndrome alfa-talassemia-atraso mental ligada ao X (ATR-X) e síndrome da deleção 22q13.
História Clínica
Fenótipo
A SA está associada a perturbação global do neurodesenvolvimento. No recém-nascido pode existir alteração do tónus e diminuição dos reflexos primitivos, geralmente associadas a dificuldade alimentar. No entanto, a maioria das manifestações clínicas surgem após o primeiro ano de vida.
É frequente a existência de microcefalia pelos 2 anos de idade. Outras alterações fenotípicas incluem hipopigmentação cutânea, capilar, da íris e da coroide, braquicefalia, macrostomia, hipoplasia do maxilar e prognatismo.
Pela clínica pouco específica e sobreposição clínica com outras entidades em idades precoces, o diagnóstico geralmente só é estabelecido após os primeiros anos de vida.
Alterações ortopédicas
A escoliose torácica está descrita em 40% dos indivíduos com SA, com predomínio no sexo feminino. É comum encontrar também valgismo, pronação tibiotársica e marcha atáxica. As complicações ortopédicas mais frequentes são a subluxação ou pronação dos tornozelos, tendões de Aquiles curtos e consequências da progressão da escoliose.
Alterações neurológicas
A maioria das crianças com SA apresenta um tónus normal. No entanto, cerca de 30% desenvolve hipertonia e 25% hipotonia. Estas contribuem para o atraso na aquisição de competências motoras, sendo comum o controlo axial em média pelos 12 meses e a marcha autónoma entre os 2 e os 6 anos.
A aquisição de competências cognitivas e funcionais também é afetada, sendo que a maioria das crianças atinge um limite de desenvolvimento psicomotor entre os 24 e os 30 meses.
A SA cursa com distúrbios do movimento. Os mais comuns associam-se a ataxia, espasticidade, tremor e fraqueza muscular, com a inerente dificuldade na marcha autónoma. De facto, cerca de 10% dos doentes com SA não desenvolve marcha. Nos restantes, a marcha pode variar significativamente, sendo que alguns demonstram marcha em pontas enquanto outros têm uma marcha mais atáxica. A marcha atáxica é muitas vezes acompanhada de flexão dos membros superior ou flapping das mãos.
A motricidade fina está igualmente afetada. É comum a existência de tremores e movimentos hipercinéticos do tronco e membros, podendo incluir mioclonias não epiléticas, que se tornam progressivamente mais evidentes e frequentes ao longo dos anos. Há também aumento da dificuldade na mobilização pelo agravamento progressivo da escoliose torácica e pela hipertonicidade dos membros, com espasticidade e distonia. Somente 30% adquire adequado controlo de esfíncteres.
Os distúrbios oromotores são frequentes nas crianças com SA e associam-se a protusão da língua, dificuldades de sucção e deglutição, sialorreia, movimentos mastigatórios involuntários e dificuldades alimentares em 80% das crianças.
A maioria das crianças com SA tem crises convulsivas nos primeiros 3 anos. Podem ter diversas características, sendo as mais frequentes as crises de ausência atípicas, as mioclonias e o estado de mal não convulsivo. O eletroencefalograma apresenta alterações características, com ondas lentas espiculadas de grande amplitude e ondas trifásicas, estando a atividade delta trifásica mais acentuada nas regiões frontais
Alterações do neurodesenvolvimento
Na maioria dos casos, são as características comportamentais que levam à suspeita da síndrome. As alterações mais típicas da SA são o riso frequente, peculiar e socialmente desadequado, no contexto de uma personalidade excitável, com flapping frequente das mãos. Evidencia-se o sorriso social persistente desde muito cedo. O comportamento e o défice cognitivo estão associados, sendo que os indivíduos com maior défice intelectual apresentam episódios de riso mais frequentes.
A Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA) está frequentemente associada à SA. Os comportamentos de hiperatividade são predominantes e incluem a incapacidade em permanecer sentado, a atividade excessiva, bem como movimentos repetitivos das mãos, tronco, cabeça e/ou mímica facial.
Outras alterações comportamentais nos indivíduos com SA incluem perturbações do sono, tendência para ingestão de objectos estranhos (pica), hiperfagia e seletividade de alimentos. Podem ainda apresentar maior sensibilidade ao calor e marcado fascínio pela água.
É frequente existir nos indivíduos com SA uma a marcada perturbação da linguagem. A pequena percentagem que adquire linguagem tem um vocabulário reduzido, geralmente não ultrapassando as cinco palavras na idade adulta. Apesar do atraso na aquisição da linguagem verbal ser mais evidente pelos 2 - 3 anos, podem ser previamente identificadas dificuldades de comunicação. Os comportamentos pré-linguísticos como apontar, fixar ou mostrar objetos, parecem preservados, mas os lactentes com SA tendem a vocalizar e chorar menos. Cerca de metade das crianças consegue adquirir a capacidade de expressar ideias ou sentimentos através da mímica. A linguagem recetiva está mais desenvolvida, isto é, parecem entender a comunicação verbal a um nível superior da que reproduzem.
As crianças com SA são geralmente amistosas e simpáticas. No entanto, cerca de 70% dos adolescentes e adultos podem apresentar comportamentos disruptivos. Além disso, existem características comportamentais em crianças com SA que se podem associar a Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), sendo mais frequentes nos indivíduos com défice cognitivo mais marcado.
A maioria dos indivíduos com SA não adquire autonomia pessoal ou social, pelo que são necessárias supervisão e apoio por um cuidador, a tempo integral.
Distúrbios de sono
Os distúrbios do sono associam-se frequentemente à SA, particularmente nas crianças entre os 2 e os 9 anos. Contribuem para alterações do sono, com diminuição do sono REM, os despertares noturnos, bem como os pesadelos e terrores noturnos frequentes.
Contrariamente ao que seria expectável, as crianças com SA não apresentam maior sonolência no período diurno, o que sugere que têm menor necessidade de horas de sono que crianças da mesma faixa etária.
Outros
Fazem ainda parte do fenótipo do SA: obesidade, refluxo gastro-esofágico, obstipação e patologia ocular, como erros de refração ou estrabismo.
Diagnóstico Diferencial
Diagnóstico
Baseia-se na clínica e nos achados do EEG. Geralmente é possível confirmação por meio de testes citogenéticos e moleculares.
Assim, perante a suspeita de SA, é importante obter um teste de metilação do 15q11-13. Na ausência de alterações, pesquisar mutação do gene UBE3A. Quando esta não é detetada, devem ser pesquisadas outras patologias que constituem o diagnóstico diferencial.
No caso de serem identificadas alterações no teste de metilação do 15q11q13, o passo seguinte será a realização de hibridização in situ (FISH) ou de microarrays para pesquisa de microdelecção.
Quando há confirmação da SA ou perante uma forte suspeita, mesmo sem resultados genéticos compatíveis, é importante orientar a criança e a sua família para consulta de genética.
Tratamento
O tratamento da SA baseia-se no controlo sintomático e medidas para potenciar o neurodesenvolvimento. Para tal, é fundamental o seguimento precoce por uma equipa multidisciplinar.
É importante o acompanhamento em Medicina Física e Reabilitação. A fisioterapia e o eventual uso de ortóteses, como coletes adaptados, melhoram o movimento e podem evitar a progressão da escoliose. Importa garantir a regular mobilização das articulações, especialmente se não há capacidade de marcha.
As terapias regulares, particularmente terapia ocupacional, permitem aos indivíduos com SA melhorar progressivamente as suas capacidades funcionais e adquirir maior autonomia para as actividades da vida diária.
A terapia da fala parece apresentar eficácia a longo prazo. De forma a minimizar as dificuldades de comunicação verbal, é essencial adotar precocemente meios alternativos, como o uso de imagens e dispositivos eletrónicos. Sempre que possível, e tal como em outros casos de perturbação global do neurodesenvolvimento, a articulação com a escola e a adaptação do ensino é desejável.
De entre os fármacos antiepilépticos, a lamotrigina, o levetiracetam e o clobazam são os mais utilizados na SA. A carbamazepina e o fenobarbital apresentam muitos efeitos adversos, e a vigabatrina e a oxcarbamazepina estão associados a agravamento das convulsões, pelo que estes são fármacos preteridos. Em alguns casos pode ser utilizada dieta cetogénica ou estimulação vagal para controlo da epilepsia.
Para evitar distúrbios de sono, devem ser adotadas medidas de higiene do sono. A terapêutica auxiliar com melatonina tem demonstrado eficácia, dado os baixos níveis séricos na SA. Outras opções menos estudadas são o ferro (especialmente se coexistir distúrbio de movimentos dos membros, como pernas inquietas ou níveis baixos de ferritina), rameteon (agonista da melatonina), gabapentina, clonazepam, zolpidem ou trazodona.
Relativamente à terapia genética, os trabalhos de investigação têm explorado a possibilidade de ativação da cópia paterna do gene UBE3A, como forma de compensação. Vários estudos estão em curso no sentido de permitir essa intervenção. O topotecano, um inibidor das topo-isomerases, evidenciou algum efeito em modelos animais, mas apresenta um elevado perfil de toxicidade que impede a progressão do estudo.
Outros ensaios clínicos com recurso a oligonuclitédeos antisense, apresentam resultados promissores em modelos animais, e encontram-se a decorrer. Só mantendo esta investigação será possível explorar o efeito da ativação da cópia paterna, que para já permanece incerto.
Evolução
As principais causas de aumento da morbilidade e mortalidade nos indivíduos com SA são a epilepsia refratária e os acidentes domésticos, pela ausência de autonomia e capacidades motoras limitadas.
As principais causas de internamento são: complicações orodentais, patologias ortopédicas, convulsões e infeções respiratórias.
As infecções orodentais são habituais e frequentemente requerem tratamento cirúrgico sob anestesia geral.
As complicações ortopédicas, nomeadamente associadas a progressão da escoliose torácica, exigem com frequência intervenção cirúrgica.
Com o avanço da idade e a entrada na vida adulta, o riso torna-se menos frequente e mais difícil de suscitar. Além disso, há melhoria progressiva dos sintomas de PHDA, bem como regularização do sono. As convulsões também tendem a ser menos frequentes com o passar dos anos.
No sentido de estabelecer um diagnostico precoce e melhorar os cuidados de saúde a estas crianças, como noutros casos de doenças raras, é fundamental a existência de colaboração internacional entre grupos de investigadores, clínicos e cuidadores.
Bibliografia
- Bonello D, Camilleri F. Angelman Syndrome: Identification and Management. Neonatal Netw. 2017;36(3):142‐151.
- Wheeler AC, Sacco P, Cabo R. Unmet clinical needs and burden in Angelman syndrome: a review of the literature. Orphanet J Rare Dis. 2017;12(1):164.
- Spruyt K, Braam W, Curfs LM. Sleep in Angelman syndrome: A review of evidence. Sleep Med Rev. 2018;37:69‐84.
- Tan WH, Bird LM. Angelman syndrome: Current and emerging therapies in 2016. Am J Med Genet C Semin Med Genet. 2016;172(4):384‐401.
- Domínguez-Berjón MF, Zoni AC, Esteban-Vasallo MD, Sendra-Gutiérrez JM, Astray-Mochales J. Main causes of hospitalization in people with Angelman syndrome. J Appl Res Intellect Disabil. 2018;31(3):466‐469.
Deseja sugerir alguma alteração para este tema?
Existe algum tema que queira ver na Pedipedia - Enciclopédia Online?