Refluxo vesicoureteral
Introdução
O refluxo vesicouretral (RVU) consiste no fluxo retrógrado da urina da bexiga para o aparelho urinário superior. Trata-se de uma entidade heterogénea cuja importância assenta no facto dos doentes com RVU poderem ter uma maior pré-disposição para infecções do tracto urinário (ITU), lesão renal (nefropatia de refluxo), hipertensão arterial (HTA) e doença renal crónica (DRC).
Segundo a sua etiologia, define-se como:
RVU primário (o mais frequente), que resulta de uma alteração congénita funcional ou anatómica do mecanismo valvular da junção vesicouretral.
RVU secundário, quando é possível identificar uma patologia subjacente (por exemplo, causa anatómica obstrutiva como válvulas da uretra posterior ou causa funcional como bexiga neurogénica).
Epidemiologia
Trata-se de uma das patologias urológicas mais frequentes em idade pediátrica. Tem uma incidência que varia entre 0.4-1.8% nas crianças saudáveis e 30-50% nas crianças com ITU documentada. Na população de crianças com ITU, os rapazes têm maior probabilidade de ter RVU do que as raparigas (29% vs. 14%).
Existe uma importante carga genética, no entanto, ainda não foi identificado um grupo específico de genes implicados. Crianças filhas de pais com RVU têm maior incidência desta patologia (21.2-61.4%).
Existe ainda uma clara associação entre RVU e disfunção vesical, acompanhada ou não de disfunção intestinal.
História Clínica
A avaliação inicial deve incluir uma história clínica completa (com antecedentes familiares e investigação de sintomas do aparelho urinário inferior), exame objectivo (com pressão arterial) e análise de urina (proteinúria).
Não existe sintomatologia específica que ajude a prever a presença de RVU. Assim, sendo uma patologia, em si mesma, assintomática, é importante um elevado grau de suspeição clínica.
O RVU é mais frequentemente detectado na sequência da investigação de:
- ITU recorrente;
- Sintomas de disfunção vesical ou intestinal;
- Hidronefrose pré-natal (HPN);
- Antecedentes familiares de RVU;
- Anomalias nefro-urológicas congénitas (como duplicidade ureteral, ureterocelo com duplicação, ectopia ureteral);
- Litíase renal.
A ITU na criança mais jovem pode apresentar-se apenas com febre e sintomas inespecíficos como letargia, anorexia, vómitos e má evolução estaturo-ponderal. Nas crianças mais velhas, particularmente após a continência de esfíncteres, podem surgir sintomas típicos como disúria, polaquiúria e dor lombar.
Diagnóstico Diferencial
Síndroma de junção ureterovesical.
Exames Complementares
IMAGIOLOGIA
A cistoureterografia miccional seriada (CUMS) é o método de imagem de eleição para o diagnóstico e classificação do RVU segundo o International Reflux Study Committee. Trata-se de um exame invasivo que requer cateterização vesical e administração de contraste iodado, pelo que a decisão da sua realização deve ser pesada tendo em conta a história do doente: ITU recorrente, alterações ecográficas ou cintigráficas sugestivas de RVU, HPN, antecedentes familiares de doença nefro-urológica. Para minimizar o risco de ITU, deve realizar-se uma urocultura nos dias antes à realização da CUMS, garantido que é estéril, e ajustar a profilaxia antibiótica no dia do exame.
A cintigrafia renal com ácido dimercaptosuccinico marcado com tecnécio (Tc99m DMSA) é o método de eleição para o diagnóstico de cicatrizes renais e para estabelecer a função relativa de cada um dos rins.
A ecografia renal e vesical é útil na deteção de malformações e no seguimento do crescimento renal.
A ressonância magnética é um exame emergente com elevada sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de nefropatia cicatricial, mas a necessidade de sedação, elevado custo e baixa disponibilidade, tornam-na pouco útil na prática clínica.
Classificação:
O International Reflux Study Committee estabeleceu 5 graus de RVU segundo o nível de refluxo de urina e a sua capacidade de alterar a anatomia do aparelho urinário. Consideram-se leves os graus I e II, moderado o grau III e graves os graus IV e V.
- Grau I - Refluxo atinge apenas o ureter.
- Grau II - Refluxo atinge o ureter e o sistema pielocalicial, sem dilatação.
- Grau II - Dilatação ligeira a moderada e/ou tortuosidade do ureter e dilatação ligeira a moderada da pélvis renal, sem dilatação calicial.
- Grau IV - Dilatação moderada e/ou tortuosidade do ureter e dilatação moderada da pélvis renal e cálices. Distorção da morfologia calicial mas manutenção da impressão papilar na maioria dos cálices.
- Grau V - Dilatação grave e tortuosidade do ureter, pélvis renal e cálices. Desaparecimento das impressões papilares na maioria dos cálices.
Fig 1 - tipos de refluxo
Tratamento
CIRURGIA
O tratamento cirúrgico do RVU está indicado para os casos mais graves (graus III a V)
A decisão cirúrgica baseia-se no grau do RVU, se este se estabelece na fase inicial da cistografia ou na fase tardia, se existem anomalias associadas (ectopia ureteral, divertículo para-ureteral, duplicidade ureteral, ou outras) e no sexo do doente, sendo o prognostico melhor no sexo masculino do que no feminino.
Tratamento endoscópico
O tratamento endoscópico consiste na injeção subosteal ou intraosteal de um produto de preenchimento (Defluxâ ou outros), promovendo o encerramento e a elevação do trajeto terminal do ureter.
O procedimento é realizado sob anestesia geral, através da realização de uma cistoscopia - procede-se à observação dos meatos e à realização da injeção. O doente tem alta no próprio dia.
A taxa de sucesso com uma única injeção ronda os 80%, dependendo do grau do RVU.
A taxa de complicação, como por exemplo a obstrução, que pode obrigar a reintervenção de urgência com colocação de stent ureteral, é inferior a 5%.
Tratamento cirúrgico aberto
Normalmente é reservado para formas mais graves (grau V), quando existam anomalias associadas, como a ectopia ureteral, a duplicidade ureteral ou divertículo paraureteral de grandes dimensões, ou ainda quando se torne necessário remodelar o próprio ureter. Existem duas abordagens:
- Via intravesical – em que se abre a bexiga;
- Via extravesical – em que não se abre a bexiga.
Em ambos os casos, a cirurgia pode ser realizada por abertura da cavidade abdominal através de uma pequena incisão supra púbica, por via laparoscópica ou robótica.
O procedimento é realizado sob anestesia geral e o doente permanece internado durante 2 a 5 dias. A taxa de sucesso ronda os 95%.
TRATAMENTO CONSERVADOR
Os principais objeCtivos do tratamento conservador são evitar ITU recorrente e preservar a função renal, aguardando a resolução espontânea.
Uma vigilância apertada, sem profilaxia antibiótica, é a abordagem mais indicada em crianças com RVU de grau leve e assintomáticas.
A disfunção vesical ou intestinal (obstipação e encoprese) estão frequentemente presentes e devem ser tratadas. O tratamento com anticolinérgicos em doentes com RVU com hiperactividade do detrusor pode estar indicado em algumas situações. A circuncisão numa fase precoce da infância pode fazer parte desta abordagem.
O tratamento conservador compreende uma série de medidas comportamentais:
- Diagnóstico e tratamento atempado de ITU através da educação da família acerca dos sinais de alarme;
- Melhoria dos hábitos miccionais (horários dedicados à micção);
- Aumento da ingesta hídrica;
- Treino de eliminação fecal regular;
- Aprendizagem de medidas de higiene corretas.
Profilaxia antibiótica contínua (PAC)
Estudos recentes mostraram que a PAC diminui o número de episódios de ITU, sem influenciar a progressão da lesão renal e o aparecimento de novas cicatrizes. Adicionalmente, existe um maior risco de surgimento de bactérias resistentes. Assim, a PAC deve ser instituída de forma individualizada tendo em conta as características de cada doente (idade, sexo, grau de refluxo, disfunção vesical, alterações anatómicas e função renal). As vantagens e desvantagens devem ser discutidas com a família.
A decisão de iniciar PAC baseia-se na presença de fatores de risco para ITU:
- Criança mais jovens
- RVU de elevado grau
- Criança sem continência de esfíncteres
- Disfunção vesical (PAC é mandatória)
- Sexo feminino
A literatura não estabelece uma duração ideal para a PAC, mas na prática clínica é habitual manter-se até à aquisição de continência de esfíncteres, garantindo que não existe disfunção vesical concomitante. Quando a PAC é suspendida, é importante realizar uma vigilância activa de ITU.
Geralmente utilizam-se antibióticos em dose baixa numa toma única noturna.
Os agentes habitualmente utilizados são:
- Trimetoprim (dose 1-2 mg/Kg/dia)
- Trimetoprim / sulfametoxazol (dose correspondente ao TMP 2 mg/Kg/dia)
- Nitrofurantoina (dose 1-2 mg/Kg/dia)
Nos lactentes com menos de 6 meses deve preferir-se o trimetoprim isolado, embora alguns autores sugiram o uso de amoxicilina (dose 10 mg/kg/dia).
- Algoritmo clínico/ terapêutico
Evolução
O RVU tem uma alta taxa de resolução espontânea ao longo do crescimento, dependendo do sexo, idade e forma de apresentação, grau de refluxo, lateralidade e anatomia. Existe maior probabilidade de resolução nos rapazes, com apresentação assintomática (por exemplo, investigação de HPN) antes de um ano de idade, com grau I-III de refluxo.
Cerca de 80% dos RVU graus I-II e 30-50% dos RVU III-V apresentam resolução aos 4-5 anos de seguimento. Fatores como alterações corticais renais, disfunção vesical e ITU recorrente são preditores negativos para a resolução espontânea.
Alguns doentes apresentam cicatrizes renais e evoluem para nefropatia de refluxo. A taxa de cicatrizes renais varia, sendo mais elevada nos graus de RVU graves e nos doentes com disfunção vesical. Estudos de seguimento mostraram que 10-20% dos doentes com nefropatia de refluxo desenvolvem HTA ou progridem para DRC.
Recomendações
Os objectivos no seguimento destes doentes, numa abordagem conservadora, são:
- Exame de imagem regular para monitorizar a correcção do RVU;
- Diagnóstico e tratamento da ITU;
- Controlo da função renal nos doentes com nefropatia de refluxo estabelecida.
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