Hemorragia uterina anormal na adolescência
Introdução
Definição
A hemorragia uterina anormal (HUA) compreende a hemorragia genital proveniente do útero, anormal em regularidade, volume, frequência e ou duração (1,2). Esta situação compreende a hemorragia (1,2):
- Menstrual abundante, mais do que 6 pensos ou tampões por dia, ou mais do que 80 mL por dia ou mais de 7 dias
- Intermenstrual ou spotting
- Com intervalos irregulares, duração e fluxo excessivos
- Menstrual com intervalo 38 dias
Epidemiologia
A HUA é das queixas ginecológicas mais frequentes em adolescentes, cerca de 75% recorrem pelo menos uma vez, aos cuidados de saúde por este motivo. A maioria dos episódios estão associados a ciclos anovulatórios por imaturidade do eixo hipotálamo-hipófise-ovário (EHHO), principalmente nos 2 anos após a menarca, no entanto é necessário excluir outras causas (1,2).
História Clínica
Anamnese
A anamnese deve conter a história menstrual, nomeadamente a idade da menarca, uma vez que quanto mais tardia, maior a probabilidade de manutenção de ciclos anovulatórios (1). A data dos 3 últimos cataménios, permite-nos aferir a regularidade dos ciclos e o intervalo entre eles. O número de pensos ou tampões por dia e sua saturação, permite a percepção ainda que subjetiva da gravidade da perda (2). Esta situação pode apresentar-se como emergência ginecológica se a quantidade da perda for importante, com repercussão hemodinâmica, mas geralmente apresenta-se com gravidade ligeira a moderada.
É importante perceber também as características da hemorragia, o timing de aparecimento, a sua duração, regularidade. A irregularidade de intervalo entre cataménios pode-nos indicar ciclos anovulatórios associados a imaturidade do EHHO. A coloração do sangue, se vermelho vivo ou acastanhado também pode ser um dado importante, pois a coloração acastanhada é adquirida pela degradação da hemoglobina que é verificada quando a hemorragia é mais escassa (1,2,3).
Outras questões relevantes são a presença de dismenorreia, outras patologias, hemorragias, sintomatologia associada, uso de contracepção ou medicações habituais, o início da vida sexual (deve ser tentada entrevista na ausência de acompanhante sob pena de a resposta dada não ser a real), número de parceiros, história de infecções vaginais e a possibilidade de gravidez ou eventual história obstétrica, trauma, masturbação, mudanças de peso, alterações dos hábitos alimentares e actividade desportiva (2,3).
A história familiar não deve ser esquecida nomeadamente no que se refere a distúrbios de coagulação, infertilidade, abortos de repetição e patologia tiroideia (2,3).
Exame objectivo
- Exame de carácter geral como a inspecção de pele e mucosas, medição da pressão arterial (bem como alterações posicionais), frequência cardíaca, altura, peso (e suas alterações no tempo), distribuição pilosa ou sinais de hiperandrogenismo. Desta forma poder-se-á descartar distúrbios da coagulação, da tiroide ou hepáticos e síndrome do ovário poliquístico.
- Exame mamário para detectar eventual existência de galactorreia.
- Exame pélvico e ginecológico importante para ajudar a eliminar patologia vulvar, vaginal, cervical ou uterina, na sua vertente orgânica, inflamatória, infecciosa bem como trauma. Nesta questão, ter especial atenção, se é uma rapariga que ainda não iniciou a sua vida sexual este exame pode ser executado com restrições ou mesmo diferido.
- Exame rectal, pode ser pertinente em casos seleccionados (1,2,3,4).
Diagnóstico Diferencial
Os diagnósticos diferenciais de hemorragia uterina anormal, são as patologias relacionadas com a gravidez, as hemorragias de origem vulvar, vaginal, uterina e anexial, bem como gastro-intestinal, nas suas variadas vertentes como trauma/corpo estranho, infecção, patologia orgânica ou funcional. De salientar que a HUA pode ser multifactorial (1,2).
Incluem-se como diagnósticos diferencias (1,2):
- Hemorragia uterina anovulatória (imaturidade EHH, hiperandrogenismo, falência ovárica)
- Patologias da gravidez (abortamento, gravidez ectópica, patologia do trofoblasto)
- Infecções
- Anomalias da vagina
- Patologia cervical (cervicite, pólipo, hemangioma, carcinoma)
- Patologia uterina (mioma, anomalias congénitas, pólipo, carcinoma)
- Distúrbios da coagulação
- Patologia endocrinológica (anovulação, tiroide, síndrome do ovário poliquístico)
- Patologia ovárica
- Endometriose
- Trauma
- Corpo estranho
- Patologia hepática ou renal
- Patologia hipofisária
- Patologia sistémica
- Medicamentosa
- Stress (psicogénico ou induzido pelo exercício)
Exames Complementares
- Hemograma completo de forma a diagnosticar-se a gravidade da perda e sua cronicidade.
- Teste de gravidez
- Teste de pesquisa de gonorreia e clamídia, por colheita endocervical, nas raparigas sexualmente activas
- Tipagem de sangue
- Estudo da coagulação e eventualmente estudo da função hepática e tiroideia e prolactina. Se anovulação crónica pode ser necessário doseamento de FSH e LH.
- Em situações específicas, pode estar indicada biópsia do endométrio se risco de cancro do endométrio como na anovulação crónica e obesidade, ou hemorragia persistente ou que não responde à terapêutica médica.
- Avaliação ecográfica do útero e anexos. (1,2,3,4)
Tratamento
O objectivo do tratamento é controlar a hemorragia, posteriormente prevenir recorrências e corrigir a causa.
Hemorragia mestrual abundante ou intermestrual ou irregular
Terapêutica Hormonal (1,2,3,4,5)
- Primeiro episódio de HUA e se o hematócrito estiver estável pode adoptar-se atitude expectante, e vigilância das perdas com o seu registo em calendário menstrual, para ser percebido qual o padrão menstrual.
- Episódios múltiplos, hematócrito estável, sem hemorragia ativa deverá ser instituída terapêutica com contraceptivo oral combinado (COC) cíclico ou acetato medroxiprogesterona 10 mg, 10 dias por mês, por 3-6 meses
- Hemorragia aguda e anemia, mas que não requer internamento, são opções terapêuticas:
- COC pelo menos 1-3 meses: iniciando 8/8h até controlo da hemorragia e depois redução da dose para 1 comprimido/dia pelo menos 21 dias, OU
- acetato medroxiprogesterona 10 mg/dia, pelo menos 12 dias
- suplementação com ferro para suplantar diminuição de reservas, em associação à terapêutica hormonal
- Hemorragia volumosa, com descida significativa do hematócrito, requerendo internamento, ou seja quando hemoglobina
- COC com alta dosagem (≥0,03 mg) de etinilestradiol pelo menos 1-3 meses, iniciando 8/8h até controlo da hemorragia e depois redução da dose para 12/12h por 2 semanas e depois 1 comprimido dia de forma cíclica por vários meses. Poderá fazer-se de forma contínua até estabilização completa da hemoglobina, OU
- acetato medroxiprogesterona 5-10 mg até 4xdia, pelo menos 12 dias
- geralmente a terapêutica hormonal pára a hemorragia em 1-2 dias, se assim não acontecer deve excluir-se outra patologia orgânica ou distúrbio da coagulação. Se falha de terapêutica hormonal, pode ser necessário proceder-se a dilatação e curetagem com intuito diagnóstico e terapêutico
- suplementação com ferro para suplantar diminuição de reservas, em associação à terapêutica hormonal
Nota: contra-indicações à terapêutica com estrogénios são: cefaleia com aura, LES, patologia tromboembolica venosa ou arterial, tumores dependentes de estrogénio e disfunção hepática.
Outras Terapêuticas Médicas (2,5)
- Anti-inflamatórios não esteroides (p. ex. ácido mefenâmico)
- Acetato de clomifeno, nos casos de HUA associada a ciclos anovulatórios persistentes ou oligomenorreia persistente após 2-4 anos da menarca pode estar indicado
Cirurgia (1,2,4)
Dilatação e curetagem, está reservada para situações de risco de vida quando a hemorragia é persistente ou que não responde a terapêutica médica, com intuito diagnóstico e terapêutico, após excluídas alterações da coagulação. Esta opção terapêutica é rara na adolescência, mas quando assim o é deve ser realizada com especial cuidado por forma a evitar futuras sinéquias uterinas (Síndroma de Asherman).
Tratamento da causa
A terapêutica deve ser dirigida à causa da HUA depois de esta ter sido encontrada (1,2).
Algoritmo clínico/ terapêutico

Evolução
Sendo a causa mais frequente de HUA na adolescência associada a ciclos anovulatórios por imaturidade do EHHO, maioritariamente nos primeiros 2 anos após a menarca, o prognóstico é favorável, com remissão da sintomatologia, quer com terapêutica expectante quer com instituição de hormonoterapia nos casos persistentes, dado que progressivamente vai ocorrendo maturação do EHHO. Para outras causas menos frequentes, a evolução e prognóstico vão estar dependentes do diagnóstico etiológico (2).
Bibliografia
- Neinstein L, Katzman D, Calahan T, Gordon C, Joffe A, Rickert V, editors. Neinstein’s Adolescent and Young Adult Health Care. 6a ed. Wolters Kluwer. 2016
- Uptodate [Internet]; [6 Abril 2016]. Disponível em www.uptodate.com .
- Bradley LD, Gueye NA. The medical management of abnormal uterine bleeding in reproductive-aged women. Am J Obstet Gynecol 2016; 214:31.
- American College of Obstetricians and Gynecologists. ACOG committee opinion no. 557: Management of acute abnormal uterine bleeding in nonpregnant reproductive-aged women. Obstet Gynecol 2013; 121:891.
- Matteson KA, Rahn DD, Wheeler TL 2nd, et al. Nonsurgical management of heavy menstrual bleeding: a systematic review. Obstet Gynecol 2013; 121:632.
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