Falência hepática aguda
Introdução
A falência hepática aguda (FHA) é uma doença rara e complexa, rapidamente progressiva, que pode levar a falência multissistémica. Pela sua mortalidade elevada, devem procurar-se etiologias potencialmente tratáveis, iniciar medidas de suporte, bem como prevenir e tratar as complicações. É prioritário o transporte precoce para um centro de referência de transplante hepático para uma melhor abordagem do doente e avaliação da necessidade de transplante.
Os critérios do Pediatric acute liver failure study group (PALFSG) são globalmente usados para auxiliar no diagnóstico de FHA.
PALFSG - Critérios de FHA (todos os seguintes) |
Doença hepática de início agudo, sem evidência de doença hepática crónica |
Evidência bioquímica de lesão hepática grave |
Coagulopatia não corrigida por vitamina K:
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Etiologia
A etiologia relaciona-se com a idade e pode ser infeciosa, tóxica, metabólica ou autoimune. Cerca de 30-50% dos doentes não têm causa identificada.
INTRODUZIR TABELA 1
Epidemiologia
Nos Estados Unidos, a incidência estimada é de 500-600 casos por ano e é a causa de 10,3% dos transplantes hepáticos pediátricos. Pode ocorrer em qualquer idade com maior prevalência no primeiro ano de vida.
História Clínica
Anamnese
A apresentação clínica varia de acordo com a idade e etiologia. É frequente existir uma fase prodrómica com sintomas inespecíficos como fadiga, mal-estar, náuseas e dor abdominal. Ocasionalmente, os doentes podem apresentar febre.
Muitas vezes, a doença hepática só é reconhecida quando surge icterícia ou deterioração clínica (com encefalopatia, por exemplo) o que motiva a realização de avaliação analítica com provas hepáticas.
A história natural da FHA é rápida, dinâmica e imprevisível, sendo urgente estabelecer o diagnóstico.
A anamnese deve ser dirigida a fatores associados a determinada etiologia:
INTRODUZIR TABELA 2 (ETIOLOGIA INFO PERTINENTE)
Epidemiologia
Nos Estados Unidos, a incidência estimada é de 500-600 casos por ano e é a causa de 10,3% dos transplantes hepáticos pediátricos. Pode ocorrer em qualquer idade com maior prevalência no primeiro ano de vida.
Exame objectivo
O exame objetivo pode ser normal na fase inicial.
É essencial a realização de exame neurológico (inicial e de forma seriada), para deteção precoce de encefalopatia.
- Mental: confusão, desorientação, alterações do comportamento
- Neurológico: hiperreflexia, sinal de Babinski
Podem ainda surgir sinais de coagulopatia como equimoses ou petéquias.
Devem ainda ser pesquisados sinais sugestivos de doença hepática crónica.
Diagnóstico Diferencial
Confirmação diagnóstica
Deve basear-se na história clínica e nas alterações laboratoriais.
Avaliação analítica inicial:
- Testes específicos para avaliar função hepática: TP/INR, bilirrubina (total, direta e indireta), proteínas totais, albumina, amónia, glicose
- Testes específicos para avaliar lesão hepática: AST/ALT, GGT
- Testes para avaliar repercussão multissistémica: gasimetria (arterial, venosa ou capilar), hemograma, ureia, creatinina, ionograma completo, amílase e lípase.
Diagnóstico etiológico
Baseia-se numa história clínica detalhada, exame objetivo cuidadoso (ver tópico anterior) e investigação complementar (segundo faixa etária):
- Serologias virais: VHA, VHE, VHB, VHS, EBV, CMV, adenovírus, enterovírus, VHH-6, parvovírus, influenza
- Estudo bacteriológico: hemoculturas, urocultura, serologias
- Pesquisa de tóxicos (acetaminofeno se história sugestiva)
- Autoimunidade: ANA, Ac anti-SMA, Ac anti-LKM, Ac anti-LC1, Ac anti-SLA
- Teste de Coombs
- Ceruloplasmina e cobre urinário
- IL2R, ferritina e trigliceridos (linfohistiocitose hemofagocítica)
- Estudo de doenças metabólicas: rastreio neonatal, aminoácidos séricos, ácidos orgânicos urinários e perfil de acilcarnitinas (maioritariamente no lactente), ferritina e saturação da transferrina (no recém-nascido)
- Ecografia abdominal com doppler
- Radiografia de tórax e avaliação cardiológica.
- Biópsia hepática: deve ser transjugular pelo menor risco hemorrágico. Não tem indicações definidas, mas é de particular interesse na FHA de causa não identificada.
Tratamento
Medidas gerais
Se um doente cumpre os critérios do PALFSG, deve haver um contacto precoce com um Centro de Transplante Hepático.
O doente deve ser transferido para uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) se apresentar evidência de:
- Encefalopatia hepática
- Instabilidade cardiovascular
- Hipoglicemia
- Disfunção multiorgânica (renal e/ou respiratória
Recomenda-se um ambiente tranquilo, cabeceira elevada e monitorização do estado de consciência, sinais vitais, padrão respiratório, saturação de oxigénio transcutânea, balanço hídrico e diurese, bem como avaliações analíticas periódicas.
Avaliação e tratamento das complicações
Principais complicações:
- Encefalopatia
É difícil o reconhecimento de encefalopatia em idade pediátrica, particularmente na criança pequena, pois pode ter manifestações frustres nos estádios iniciais. Deve distinguir-se de alterações neurológicas por descompensação metabólica, hidroeletrolítica ou instabilidade hemodinâmica.
Classifica-se em 4 graus de acordo com o estado mental, sinais neurológicos, reflexos e achados no eletroencefalograma. A presença e o grau de encefalopatia orientam a monitorização do doente com FHA.
INTRODUZIR TABELA 3
b. Hiperamoniemia
Níveis de amónia superior a 100 µmol/L na admissão representam um fator de risco independente para o desenvolvimento de encefalopatia hepática. Valores inferiores a 75 µmol/L estão raramente associados ao desenvolvimento de hipertensão intracraniana.
São fatores de exacerbação: sepsis, choque, hipotensão, hemorragia gastrointestinal, insuficiência renal ou alterações eletrolíticas.
O doseamento de amónia no sangue venoso deve seguir as instruções específicas de colheita, transporte e acondicionamento da amostra.
O tratamento baseia-se na adequação da ingestão proteica ao nível de amónia e na administração de fármacos como a lactulose e a rifaximina.
c. Edema cerebral
É uma complicação grave que pode levar a aumento da pressão intracraniana (evento terminal da encefalopatia). Níveis de amónia superiores a 200 µmol/L estão associados a herniação cerebral (fator de risco de mortalidade). Casos mais graves têm indicação para monitorização da pressão intracraniana.
d. Fluídos e eletrólitos
Deve ser iniciada fluidoterapia de manutenção para 90% das necessidades hídricas diárias.
As necessidades de sódio são de 1-3 mEq/kg/dia com uma concentração alvo de 145-155 mmol/L. A hiponatremia só deve ser tratada quando: sintomática, concentração de sódio inferior a 120 mmol/L ou não é possível restrição de fluídos.
A hipofosfatemia é frequente devendo ser considerada a suplementação com fosfato monopotássico (concentração alvo superior a 3 mg/dL).
Pode ocorrer tanto hipo como hiperglicemia sendo o valor alvo de glicemia entre 90-120 mg/dL. Pode ser necessário aumentar a concentração de glicose no soro e colocar CVC se esta for superior a 12,5%.
Nestes doentes existe um equilíbrio delicado entre a hiperhidratação (que favorece a ascite, o edema pulmonar e cerebral) e a restrição hídrica excessiva (que pode levar a síndrome hepato-renal, necrose tubular aguda, encefalopatia e hipotensão).
e. Ascite
A ascite pode ser precipitada por hipoalbuminemia, administração excessiva de fluídos ou infeções. O tratamento consistente em resolver os fatores causais, restrição de fluídos e diuréticos apenas em casos refratários ou secundários a hiperhidratação.
f. Coagulopatia
Na FHA diminuem tanto os fatores pro-coagulantes (fator V, fator VII, fator X e fibrinogénio) como os anticoagulantes (antitrombina, proteínas C e S). Assim, o doente pode apresentar eventos trombóticos ou hemorrágicos.
O tempo de protrombina e o INR estão tipicamente elevados. Deve administrar-se vitamina K via intravenosa (evitar via intramuscular por risco hemorrágico), não esquecendo que só se deve reavaliar o INR 12-24 horas depois da sua administração.
O uso de concentrado plaquetário, plasma fresco ou fibrinogénio restringe-se aos casos de hemorragia ativa ou previamente a procedimentos invasivos.
g. Infeções
Existe maior suscetibilidade para infeções bacterianas e sepsis, pelo que todos os doentes devem colher culturas. Deve ser iniciada antibioticoterapia de alto espetro se suspeita clínica ou laboratorial de infeção.
h. Lesão renal e disfunção cardiovascular
Pode ocorrer lesão renal aguda por uso de terapêuticas nefrotóxicas ou por hipotensão.
A vasodilatação e disfunção cardíaca podem levar a instabilidade hemodinâmica, sendo útil a realização de ecocardiograma. É importante evitar a hipotensão, considerando suporte vasopressor, se necessário.
Terapêutica específica
Dispomos de tratamentos dirigidos a algumas etiologias que devem ser iniciadas o mais precocemente possível.
Fármacos e tóxicos |
Suspensão imediata e antídotos |
Infeções víricas |
Anti-virais (se existente anti-viral adequado conhecido) |
Tirosinemia |
NTBC |
Galactosemia |
Dieta isenta de galactose e lactose |
GALD |
Imunoglobulina e exsanguíneo-transfusão |
Hepatite autoimune |
Metilprednisolona |
Terapêuticas de suporte hepático
A plasmaferese tem demonstrado melhoria da sobrevida dos doentes sem transplante, com impacto estatisticamente significativo na mortalidade.
Apesar da pouca experiência em idade pediátrica, é necessário otimizar a abordagem em UCIs, incluindo as técnicas de plasmaferese e de hemodiálise.
Transplante hepático
É um tratamento potencialmente life-saving. A sua indicação deve ter em conta a causa e a gravidade da FHA, a probabilidade de recuperação espontânea, a disponibilidade de tratamento específico e a comorbidade, principalmente o risco de dano neurológico permanente.
Os critérios de inclusão mais comumente utilizados são a encefalopatia graus III-IV e a coagulopatia (INR > 4 ou quantificação do fator VII < 10%). As principais contraindicações são os danos cerebrais irreversíveis e a falência multiorgânica.
Destacar que algumas etiologias de FHA podem não ter indicação para transplante hepático, nomeadamente a linfohistiocitose hemofagocítica, algumas neoplasias e algumas doenças mitocondriais.
Suporte nutricional
Estes doentes apresentam um estado catabólico com maior necessidade calórica. A alimentação entérica deve ser sempre preferida, se necessário com colocação de SNG/SNJ.
No caso de alimentação parentérica total existe a possibilidade de oferecer o máximo de calorias em volume mínimo. Se for objetivada hiperamoniemia, deve realizar-se restrição proteica de 1 g/kg/dia.
Evolução
A FHA era uma doença devastadora na era pré transplante hepático, com uma mortalidade de 70-95%. Com o desenvolvimento do transplante hepático a sobrevida melhorou progressivamente.
Não existem preditores de prognóstico validados e os modelos atuais têm muitas limitações. A decisão de avançar para transplante é muito complexa e individualizada.
Bibliografia
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