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Introdução

A Doença de Kawasaki (DK) é uma patologia inflamatória sistémica febril da infância, caraterizada por uma vasculite das artérias de médio e pequeno calibre. É uma condição auto-limitada e de etiologia desconhecida. 

Frequência

Cerca de 85% dos casos ocorrem em crianças entre os 6 meses e os 5 anos de idade, com predomínio no sexo masculino (rácio 1,5:1). É a segunda vasculite mais comum da infância e é a principal causa de doença cardíaca adquirida nos países desenvolvidos. Na Europa, a incidência anual é de 10-15/100 000 pessoas, sendo maior em crianças de ascendência asiática.

História Clínica

Etiologia 

A etiologia da DK permanece desconhecida e aparenta ser multifatorial. Parecem existir determinadas caraterísticas genéticas, auto-imunes e infeciosas com implicações na sua patogénese. A principal teoria advoga que um agente infecioso desconhecido leva à ativação exacerbada do sistema imune em crianças geneticamente predispostas. 

Diagnóstico 

O diagnóstico da DK clássica é clínico e baseia-se na presença de febre superior a 5 dias (geralmente >39ºC, com duração de 7-12 dias) e ≥4 dos seguintes critérios:

  • Conjuntivite bilateral, não exsudativa: surge imediatamente após o início da febre e pode também associar-se a uveíte anterior ou hemorragia subconjuntival. 
  • Mucosite: eritema, fissuras, descamação ou hemorragia dos lábios; língua em framboesa ou eritema difuso da orofaringe.
  • Adenopatias cervicais: unilaterais confinadas ao triângulo cervical anterior, com ≥1,5cm. 
  • Exantema polimorfo maculopapular com aparecimento no 3º-5º dia de febre, não pruriginoso. Inicia-se na região perineal e progride para o tronco e extremidades.
  • Alterações das extremidades: eritema, endurecimento e edema das mãos e pés (fase aguda) vs descamação peri-ungueal com possível extensão às palmas e plantas (fase subaguda).

É comum os critérios diagnósticos não estarem presentes em simultâneo, pelo que o aparecimento desfasado dos sintomas dificulta o diagnóstico.

A inflamação sistémica pode ainda promover outras manifestações clínicas inespecíficas que surgem durante o pródromo da DK (7-10 dias antes dos sintomas mucocutâneos), nomeadamente: dor abdominal, vómitos, diarreia, irritabilidade (secundária à pleocitose do líquor), hepatite, pancreatite, piúria estéril, artrite ou artralgias, inflamação da cicatriz da BCG e surdez neurossensorial auto-limitada. Pode ocorrer tosse e congestão nasal secundárias à infeção respiratória viral subjacente.

Evolução clínica

A DK geralmente apresenta uma evolução trifásica:

  • Fase aguda (7-14 dias): é caraterizada por febres altas, em associação aos outros sinais e sintomas típicos previamente descritos. 
  • Fase subaguda (4 semanas): período após o desaparecimento da febre e do exantema. Pode ocorrer descamação cutânea, artralgias, hiperemia conjuntival e trombocitose. Este é o período de maior incidência de aneurismas das artérias coronárias (AAC) e de morte súbita. 
  • Fase de convalescença (4-8 semanas): período assintomático, já com melhoria progressiva dos parâmetros analíticos, onde ainda prevalece o risco de AAC, embora menor que na fase anterior.

Classificação

A DK pode ser classificada em 3 subtipos:

  • DK clássica: descrita anteriormente.
  • DK incompleta (mais comum <12-24 meses): doentes com febre ≥5 dias e  ≤3 critérios clínicos de DK clássica OU lactentes com menos de 6 meses, com febre >7 dias, sem etiologia conhecida e com parâmetros inflamatórios elevados. Assim, na suspeita de DK incompleta, está recomendada a realização de estudo analítico e ecocardiograma. 
    • O diagnóstico é feito se ≥3 critérios laboratoriais forem positivos (PCR ≥3 mg/dL e/ou a VS≥40 mm/h, hipoalbuminemia ≤3g/dL, anemia, ALT >50U/L, plaquetas >450.000/mm3 (2º semana), leucocitose ≥15.000/mm3 ou piúria estéril). 
    • Independentemente dos resultados laboratoriais, se o doente tiver um ecocardiograma positivo, o tratamento específico da DK deve ser realizado. O ecocardiograma pode demonstrar aneurismas coronários, hiperlucência, ectasia, disfunção ventricular, regurgitações valvulares e derrame pericárdico. O ECG pode revelar aumento dos intervalos PR ou QT, aumento da voltagem da onda Q, alterações da repolarização ou distúrbios de ritmo. 
  • DK atípica: ocorre em doentes com febre ≥5 dias acompanhada por outros sinais/sintomas clássicos, assim como por manifestações atípicas como convulsões, parésia facial, hipoacusia neurossensorial transitória, hepatomegalia com icterícia ou hidrópsia vesicular.

Diagnóstico Diferencial

Os principais diagnósticos diferenciais da DK são doenças infeciosas comuns da infância, nomeadamente infeções respiratórias víricas.

Existem determinadas caraterísticas sugestivas de diagnósticos alternativos, não comumente encontradas na DK, tais como:

  • conjuntivite exsudativa (adenovírus),
  • faringite exsudativa (faringite estreptocócica),
  • erupção cutânea bolhosa ou vesicular (Síndrome de Stevens-Johnson/Síndrome de choque tóxico),
  • linfadenopatia generalizada e
  • esplenomegalia (EBV).

Outros diagnósticos a considerar são reações de hipersensibilidade a fármacos, linfadenite bacteriana ou artrite idiopática juvenil. 

No entanto, a DK é suficientemente heterogénea para que nenhum destes achados possa excluir definitivamente o seu diagnóstico, pois podem ocorrer infeções víricas concomitantes (síndrome inflamatória multissistémica ou MISC pós infeção por Covid19).

Exames Complementares

O diagnóstico de DK é clínico, pois nenhum estudo laboratorial está incluído nos critérios de DK completa. Os achados laboratoriais, embora inespecíficos, são úteis para apoiar o diagnóstico, principalmente quando os sintomas não são clássicos, nomeadamente: 

  • Leucocitose ≥15000/mm3 com neutrofilia;
  • Anemia normocítica normocrómica;
  • Trombocitose >450000/mm3 - trombocitopenia é rara e pode ser um sinal de CID, fator de risco para anomalias coronárias;
  • VS ≥40mm/h e PCR ≥3mg/dL (bom marcador da atividade da doença);
  • Hipoalbuminemia ≤3g/dL - associada a doença aguda mais grave e prolongada;
  • Aumento dos triglicerídeos e LDL;
  • Hiponatremia - associada a maior risco de AAC;
  • Aumento das transaminases;
  • Piúria estéril;
  • Pleocitose no líquor e no líquido sinovial.

O ecocardiograma é o exame utilizado para avaliar a presença de AAC. Deve ser realizado de forma seriada: no momento do diagnóstico, 1-2 semanas e 5-6 semanas após o início da doença.

Tratamento

Todas as crianças com suspeita de DK devem ser internadas sob monitorização cardíaca contínua. O principal objetivo do tratamento é reduzir a inflamação vascular e prevenir complicações cardíacas.

Os pilares do tratamento são a Imunoglobulina intravenosa (IGIV) e o ácido acetilsalicílico (AAS)

IGIV

A administração de IG (dose única 2 g/kg durante 10-12h) nos primeiros 10 dias de doença reduz o risco de AAC de 15-25% para 5%, diminui em 95% o aparecimento de aneurismas gigantes, reverte a depressão da contratilidade miocárdica e contribui para a resolução sintomática.

A administração de vacinas vivas (sarampo ou varicela) deve ser adiada pelo menos 11 meses após administração de IGIV, pois os anticorpos adquiridos passivamente podem interferir com a imunogenicidade da vacina. 

AAS

A dose inicial de AAS é de 30-50 mg/kg/dia de 6/6h (dose anti-inflamatória). Após 48-72h de apirexia, a dose deve ser reduzida para 3-5 mg/kg/dia (dose anti-plaquetária). A suspensão de AAS é efetuada quando ocorre normalização dos parâmetros inflamatórios e das plaquetas, por volta das 6-8 semanas. 

Na presença de AAC, a terapêutica antiagregante deve ser mantida. Se aneurisma >4 mm ou complicado por trombose deve adicionar-se, com o apoio da Cardiologia Pediátrica, terapêutica anticoagulante, nomeadamente varfarina ou heparina não fracionada. 

Todos os doentes com necessidade de uso prolongado de AAS em baixas doses devem realizar a vacina da gripe anual e ser vacinados contra a varicela, se previamente não imunes, pelo risco de síndrome de Reye durante uma infeção ativa por estes agentes. Nestes casos e em doentes alérgicos ao AAS, o clopidogrel deve ser o fármaco de substituição. É importante alertar os doentes sob terapia prolongada com aspirina que o uso concomitante de ibuprofeno deve ser evitado.

DOENÇA REFRACTÁRIA

Definida como:

  • Persistência ou recorrência da febre 24-36h após tratamento com IGIV;
  • Reaparecimento da febre nas 2 primeiras semanas de tratamento após apirexia prévia, não atribuível a outra causa;
  • Sinais de falência terapêutica: progressão dos AAC e manutenção de sinais de inflamação sistémica.

Cerca de 10-20% dos doentes são resistentes à primeira dose de IGIV. Nestes, um segundo tratamento com IGIV, a utilização de corticóides e de fármacos biológicos pode ter um papel relevante.

O tratamento da doença refratária consiste:

  1. Repetição da perfusão da IGIV na dose original OU
  2. IGIV associada a corticoterapia adjuvante: metilprednisolona EV 20-30mg/Kg/dia durante 3 dias ou prednisolona 2mg/kg/dia q8h, seguida de redução progressiva em 2-3 semanas. O uso de corticóides no tratamento da DK permanece controverso e, atualmente, não há consenso sobre a dosagem mais adequada OU 
  3. Infliximab (3º linha): 5mg/Kg intravenoso em 1-2 tomas com 2 semanas de intervalo.

Existem outras opções farmacológicas possíveis, contudo são necessários mais estudos para determinar a sua segurança e eficácia.

RISCO DE RECORRÊNCIA

A doença recorrente define-se como um novo episódio de DK após, pelo menos, 2 meses de intervalo do anterior. Esta aumenta o risco de sequelas nas artérias coronárias. A taxa de recorrência varia entre 1,7-3% e ocorre sobretudo em crianças abaixo dos 3 anos e nos primeiros 12 meses após a doença.

Evolução

Complicações cardiovasculares

São as principais responsáveis pela morbi-mortalidade da DK, tornando esta patologia a principal causa de cardiopatia adquirida nos países desenvolvidos. A miocardite é a complicação mais frequente na fase aguda, enquanto na fase subaguda, é a formação de AAC cujo risco é maior em doentes não tratados ou com início terapêutico  tardio, no sexo masculino, abaixo dos 12 meses ou acima dos 5 anos e na DK recorrente.

Prognóstico:

Depende da gravidade do envolvimento das artérias coronárias como marcador de risco de enfarte agudo do miocárdio (EAM), a principal causa de morte.

As crianças sem alterações cardiovasculares na fase aguda/subaguda geralmente mantêm-se assintomáticas durante o resto da vida.

Dilatações coronárias <8mm tendem a regredir ao longo do tempo e a maioria das dilatações <6mm desaparecem por completo. Contudo, aneurismas gigantes >8mm acarretam maior risco de EAM e morte súbita, a qual ocorre em 0,1-0,3% dos casos.

Recomendações

A prática de atividade física deve ser restringida em doentes com alto risco de EAM. Nas crianças com risco aumentado de trombose durante a fase de convalescença, nomeadamente nas que apresentam aneurismas coronários gigantes, o exercício físico deve ser realizado conforme indicação médica. 

A maioria das crianças com DK recupera totalmente sem sequelas. Porém, é crucial manter vigilância no médico assistente e, caso haja evidência de complicações cardíacas, no cardiologista pediátrico. 

Bibliografia

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  5. Newburger JW, Fulton DR. Kawasaki disease. Medscape 2024. [consultado em Setembro 2024]. Disponível em: https://emedicine.medscape.com/article/965367-overview

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